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Crônica da Cidade

O caso da naja

A internet encobre uma realidade paralela inimaginável. De vez em quando, algum acidente faz com que ela irrompa e descerre um mundo desconhecido da maioria de nós. E foi isso que aconteceu com a história do estudante de veterinária, morador do Guará 2, picado por uma cobra naja, uma das serpentes mais venenosas do mundo.

O acidente puxou os fios de uma trama surreal, embaixo de nossas barbas. Até agora, as investigações revelaram a descoberta, em diversos pontos da cidade, de 28 cobras peçonhentas importadas e três tubarões na Colônia Agrícola Samambaia, criados em cativeiros.

O rapaz que levou a picada da naja chegou a ficar em coma, mas se recuperou graças a uma vacina doada pelo Instituto Butantan. Foi a primeira vítima da irresponsabilidade, mas não a única. Os tratadores de animais do zoológico disseram que não podiam fazer nada com a serpente, pois o risco era grande. Não há soro antiofídico para essa espécie, oriunda da Ásia e da África.

A gente só vê essas serpentes nos documentários da National Geografic. Houve uma sucessão de leviandades extremamente perigosas. O amigo do rapaz picado pela cobra levou a naja em uma caixa e deixou próximo ao shopping Pier 21. A naja pode inocular o veneno a três metros de distância. Imagine se uma criança se aproxima, inadvertidamente, da caixa.
Repatriar os animais torna-se inviável porque eles foram criados em cativeiros e os países de origem não os aceitariam. Soltá-los no mato seria uma temeridade. Se alguém fosse picado, estaria, provavelmente, sentenciado para morrer. Olha só o problema de saúde pública que pode provocar a irresponsabilidade.

Quem é estudante de medicina veterinária tem a obrigação de ser o primeiro a saber, a formar consciência e a educar os outros em relação aos animais silvestres. Deveria aprender com os médicos e infectologistas, que dão o exemplo de responsabilidade com a saúde pública no enfrentamento da pandemia.

Não se intimidaram com as pressões dos governantes negacionistas, não se renderam ao caminho mais fácil e ao oportunismo. Pensaram nas consequências das decisões para salvar vidas. Estão na contracorrente da insensatez dos governantes. Se não fosse essa ação lúcida e corajosa, a situação seria ainda mais grave.

O existencialismo colocou a liberdade como a questão humana essencial. Mas muitos não entenderam e fizeram uma leitura torta. Por isso, o filósofo Jean-Paul Sartre escreveu o ensaio O existencialismo é um humanismo. Para ele, nós estamos condenados à liberdade. Liberdade não é fazer o que lhe der na veneta; liberdade é igual à responsabilidade. Acredito nesse conceito, pois as nossas escolhas, intervenções e omissões sempre recaem sobre nós.