Garantir o fortalecimento da saúde primária, investir em políticas públicas para possibilitar que a população fique em casa e analisar o cenário da pandemia de forma ampla, não apenas pelos resultados, mas, também, pelos indicadores de trabalho. Esses são alguns dos caminhos apontados por Jonas Brant para que o Distrito Federal combata o novo coronavírus. Epidemiologista, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB) e membro do Comitê Gestor do Plano de Contingência em Saúde da covid-19, Jonas explicou, em entrevista ao Correio, qual o atual momento da pandemia na capital e quais os principais erros e possibilidades de acerto do enfrentamento público à doença. O pesquisador observa que o DF conta com uma curva estabilizada em um alto patamar de casos de infecção confirmados, algo que liga um sinal de alerta quanto às reaberturas. Por isso, Jonas afirma que é cada vez mais necessário investir em políticas sociais e de saúde, que precisam fortalecer a atenção primária para combater o avanço do vírus.
Qual o cenário atual do avanço do novo coronavírus no Distrito Federal? Chegamos ao pico?
O cenário atual é de estabilidade no número de casos, frente à dinâmica da sociedade. Mas o índice se estabilizou em um patamar alto e há preocupação em relação à abertura de atividades não essenciais, como academias, restaurantes, bares e escolas. Isso pode levar a curva de casos a uma mudança do patamar, porque cria oportunidade de o vírus encontrar mais pessoas e deixá-las mais suscetíveis às infecções. Atualmente, a maioria da população ainda não foi exposta ao contágio, estimamos que menos de 10% tiveram essa contaminação. Ou seja, ainda tem muita gente que pode se expor e, pelas medidas de isolamento físico que estamos tomando, estamos evitando que elas sejam infectadas. É possível cair a curva de contaminação se continuarmos com as medidas atuais de isolamento, mas isso em conjunto com um fortalecimento de vigilância em saúde. Com o volume de óbitos que temos todo dia, é difícil imaginar retornar tudo ao normal, carregando milhares de mortos nas costas.
E como podemos fortalecer a vigilância em saúde dentro deste contexto de pandemia?
O DF não tem conseguido dar o fortalecimento necessário da atenção primária e não podemos ter reaberturas sem isso. Quando falamos dessa atenção primária, falamos daquele primeiro atendimento do paciente no posto de saúde, do trabalho de agentes comunitários e das equipes de saúde da família, principalmente. Hoje, a saúde da família cobre um pedaço pequeno do DF e isso é prejudicial. São esses serviços de vigilância que garantem a prevenção, o rastreamento de contatos que uma pessoa infectada teve. Tudo isso diminui o índice de pessoas contaminadas, porque, assim, conseguimos fornecer as orientações corretas para a população que pode estar carregando o vírus sem saber e mapeamos quem pode ter sido infectado, para que ele não continue fazendo a doença circular. Quem pode conter a pandemia é a atenção primária e a vigilância em saúde. Elas que contêm o impacto e precisam de investimento. Precisamos dessa valorização do agente comunitário de saúde, do enfermeiro, do médico que vai atuar na UBS (Unidade Básica de Saúde). Eles fazem a diferença nesse momento.
O sistema de saúde público atual tem consigo garantir a quantidade de testes e leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) necessária? Ou pode haver um colapso?
Temos aqui o Laboratório Central de Saúde Pública do Distrito Federal, o Lacen, que tem feito um trabalho muito bom em garantir um grande volume de testagens por dia. Nas últimas semanas, ainda foi estruturado que cada região administrativa faça os testes daquela localidade na UBS da região. Ou seja, a rede está estruturada. Porém, está desfalcada com equipes da ponta, fazendo com que exista um problema da rede de atenção primária. Também é importante entender que o colapso não se dá somente em relação ao número de leitos de UTI, esse é só um dos indicadores de sobrecarga no sistema. O número de profissionais intensivistas é outro índice importante, porque agora nós não temos esses profissionais e precisamos disso. Precisamos, ainda, dos remédios essenciais, de equipamento de proteção individual (EPI). Ou seja, temos que analisar, de forma ampla, como está o sistema como um todo. O que não podemos é ter o pensamento de quem acha que está seguro descendo a ladeira dentro do carro só porque está de cinto de segurança, que é uma coisa básica.
Os dados divulgados pela Secretaria de Saúde chegaram a ser alvos de medida judicial, quando a Justiça determinou mais transparência na divulgação dos números. Qual a melhor forma de fazer essa análise completa? Quais informações precisam ser disponibilizadas para os pesquisadores, imprensa e população em geral?
O sistema de informações da secretaria, hoje, apresenta muitos resultados, mas precisamos também entender os indicadores e dados dos processos de trabalho. Ou seja, eu quero saber quantos exames o DF fez de PCR e quantos deram positivo, conseguindo ter acesso aos indicadores da capacidade de testes. Porque, por exemplo, se temos mil casos positivos em exames de PCR por dia no Lacen e sabemos que o laboratório fez 5 mil testes, conseguimos ver que, se o número de confirmações chegar a 2 mil e o dado de capacidade de testes continuar em 5 mil, temos uma mudança do perfil de positividade, a doença está se alastrando. Isso nem sempre se reflete no número de casos, mas pode ser que a proporção esteja aumentando. Então, existe uma série de indicadores de processos importantes para que a gente entenda o cenário do DF. Em quantos casos conseguimos encontrar a pessoa que apresentou exame positivo e conferir se ela está em isolamento? Temos cerca de 5% dos casos em que nem a região administrativa da pessoa está computada, o que dificulta as análises.
Quando falamos em isolamento, falamos, também, sobre necessidades sociais que podem impedir que a pessoa fique em casa. Qual o melhor caminho para solucionar esse problema?
É muito fácil isolar um paciente que apresentou teste positivo e faz parte da classe média, porque ele vai poder ficar em casa, sem sair, já que consegue fazer isso e continuar pagando as contas. Mas, precisamos de uma política de apoio social robusta para quem não consegue se isolar. Temos que analisar quantos por cento de casos de pessoas contaminadas se isolaram e tiveram apoio para isso. Porque é fácil só dizer “fique em casa” e pronto, deixar a pessoa sem instrumentos para isso. O que precisamos é que um morador do Sol Nascente, por exemplo, que precisa que a conta de água seja paga e sai para trabalhar, mesmo com sintomas ou confirmação da doença, tenha estímulos para o isolamento. Se ele mora em uma casa com quatro pessoas e depende da renda diária, ele vai alastrar o vírus para a família, para quem tiver contato com ele na rua. Agora, se eu já sei que na casa dele teve registro de uma pessoa com covid e eu consegui isolar essa pessoa e quem mora naquela casa, garantindo cesta básica, pagamento de contas e apoiando financeiramente, a doença não vai se espalhar. A doença começa a ser transmitida antes do início dos sintomas, então, alguém contaminado já pode transmitir antes de perceber que está doente. Por isso é tão importante exigir o rastreamento de contatos de quem foi contaminado, saber com quem a pessoa esteve, e garantir o estímulo financeiro. Não sei como poderia ser isso na prática, mas o ideal seria que o governo observasse as necessidades daquela pessoa e falasse: “Fica em casa que esse mês você não vai precisar pagar a conta de luz”, por exemplo. Se isso não for feito, o vírus vai se alastrar muito mais.
Em um momento de pandemia, o cenário ideal muitas vezes é difícil de se ter, mas é possível fazer o rastreamento de pessoas que tiveram contato com contaminados para evitar a ampliação da circulação do vírus?
É possível fazer o rastreamento de contatos mesmo nesse momento, sim. Há países que fazem isso por telefone, a pessoa contaminada indica que recebeu uma visita da tia, que foi na casa de outro conhecido, e eles são contatados para fazerem exames e isolamento. Mas, para isso, precisamos de integração com equipes de saúde da família. O DF podia ter feito seleção de agentes comunitários da mesma forma que fez seleções com médicos, porque essa atenção primária também é de uma importância considerável em um momento de pandemia. Sem contar que o agente comunitário é alguém de nível médio, também é uma pessoa que precisa de recurso. Se o Estado coloca um agente para ajudar naquela determinada região, isso gera circulação de economia. Pode ser um contrato temporário neste momento de crise econômica. Mas, a gente poderia ter feito isso logo nos primeiros casos de covid-19 na capital, porque teríamos tempo para dar treinamento, instrução. Ou seja, acho que tem formas de fazer esse monitoramento, mas precisamos priorizar ações. Olhar somente para leitos de UTI é uma forma simplista de lidar com o cenário completo.