Cidades

Compartilhamento em grupo


Pensando em oferecer à comunidade um suporte neste momento, a UnB começa, a partir de 6 de julho, com as atividades do grupo Vínculos e reflexões: Grupo terapêutico breve para familiares de vítimas da covid-19. Para a psicóloga Larissa Polejack, é uma oportunidade de compartilhar experiências e mostrar, sobretudo diante do contexto no qual vivemos, que ninguém está sozinho. “O assunto é urgente. Com esse número de perdas que a gente tem, o impacto não é só para as famílias, é para a sociedade. E a sociedade como um todo também precisa viver esse luto”, comenta.

Neste momento, entra o que o comitê trabalha em todas as iniciativas: a empatia. “As pessoas estão perdendo suas vidas, as famílias estão tendo suas trajetórias modificadas. Então, é muito importante que se fale sobre isso e se mostre para essas pessoas que elas não são invisíveis. Não estamos falando de um número, estamos falando do amor de alguém. Viver isso como grupo, como sociedade, é ser solidário. Atender aos outros é fortalecer nossa rede de cuidado para que o impacto, que é grande, seja minimizado pelo afeto, pela solidariedade e pela escuta. É a oportunidade que temos de quebrar o tabu sobre a morte”, justifica.

A dor, segundo Larissa, pode ser ressignifica. “Apesar de tudo, a covid tem trazido para a gente, como sociedade, muitas coisas, entre elas a valorização dos afetos. Negar a morte, dizer que não está acontecendo traz mais sofrimento.”

Detalhes

“Ninguém se prepara para perder um pai, um irmão ou um filho. Não poder se despedir foi um agravante, porque a gente fica sem conseguir prestar as homenagens que queria, dar o último adeus. Isso deixou a família mais aflita e triste. Ao mesmo tempo, tem sido um momento de união para que o que aconteceu com ele sirva de exemplo a todos. As pessoas estão minimizando o vírus, mas ele é traiçoeiro. Ninguém está imune”, desabafa o empresário Bruno Aguiar, 30. Em março, ele acompanhou, a distância, a piora do quadro de saúde do pai, Juraci Araújo Pinheiro Júnior, 54, infectado pelo novo coronavírus.

Nascido em Fortaleza, Bruno é o único da família que mora longe. Estava tudo programado para rever os familiares em abril, no casamento da irmã, mas a pandemia alterou os planos. “Os casos no Ceará cresceram muito rápido e cada um estava passando sua quarentena isolado, tentando se ajudar como podia, tentando estar perto mesmo a distância. Meu pai tinha alguns discursos que me preocupavam. Ele sabia que tinha que se proteger, mas precisava trabalhar. Comprou o discurso de que somente os grupos de risco precisavam ficar em casa. Ele era motorista de aplicativo, tomava todos os cuidados, trabalhava de máscara, tinha álcool em gel no carro, mas o serviço dele era colocar pessoas dentro do carro, e acabou se colocando em um alto risco”, lembra o empresário.

Juraci ficou alguns dias com sintomas em casa até que a falta de ar piorou e ele procurou atendimento em uma Unidade de Pronto Atendimento, onde ficou por dois dias até precisar ser entubado e transferido para a UTI de um hospital. “Ele teve muita sorte, porque precisou dessa UTI em um momento em que o sistema de saúde de Fortaleza colapsou, eram as últimas disponíveis. A UPA que ele foi atendido fechou as portas um dia depois de ele dar entrada”, acrescenta o filho.

Com 15 dias de internação e uma infecção no sangue difícil de tratar, Juraci não resistiu. Mesmo diante da dor, da ausência e da distância física, a união tem prevalecido entre os familiares, e o vínculo tem possibilitado acolher os mais vulneráveis. “Temos estado mais presentes, feito mais videochamada, demonstrado mais carinho, mais afeto. Isso fez com que a família cuidasse mais uns dos outros e se fortalecesse nesse momento de luto”, comenta Bruno.

Para o empresário, além do estreitamento de laços, não ter se despedido do pai permitiu que ele guardasse a imagem alegre de Juraci. “São detalhes que podem confortar a gente. Dias antes do início da pandemia, período no qual estávamos muito próximos, falávamos muito ‘eu te amo’. Parecia que, de alguma forma, a gente estava se despedindo, demonstrando muito amor e carinho. Ele partiu no meio dessa atmosfera de amor familiar.”

Para Bruno, não há fórmula nem algo que possa fazer para amenizar a dor. “A gente espera que, em algum momento, a dor se transforme em saudade. E o maior movimento que a gente fez para homenageá-lo é estar mais junto. Hoje, ficam as memórias ligadas ao humor sagaz e inteligente dele, que passou para os filhos. A gente espera que a morte dele não tenha sido em vão. A minha família está de luto, mas outras podem evitar esse luto respeitando a quarentena. O isolamento social é a nossa maior arma para que outros irmãos, outros pais, outros filhos não passem por essa mesma dor.”

"A gente espera que a morte dele não tenha sido em vão. A minha família está de luto, mas outras podem evitar esse luto respeitando a quarentena"
Bruno Aguiar, filho de Juraci Araújo Pinheiro Júnior

Despedidas virtuais

Fundador do inFINITO, Tom Almeida decidiu promover um movimento de conversa sincera sobre o viver e o morrer. Ao notar os desdobramentos e os impactos da pandemia no processo de despedida e reconhecendo sua importância, o grupo criou um guia de rituais de despedidas virtuais. “O material reúne passos para a pessoa criar uma celebração virtual. É bem simples, porque sabemos que o enlutado está muito abalado e nem sempre pode recorrer ao núcleo estendido, que são os amigos e os parentes mais próximos. Uma das belezas é que se pode fazer algo personalizado. É atemporal, pode ser feito por diferentes grupos, a família, os colegas de trabalho. É uma forma de homenagear a pessoa que morreu. Além disso, por ser virtual, pode ser gravada para ser assistida novamente, o que também ajuda na elaboração do luto”, detalha. A despedida pode ou não ter um contexto religioso, o objetivo, como argumenta Tom, é trazer conforto e acolhimento para o enlutado.

Para ele, a pandemia deixou todo mundo à flor da pele. “Para cada morte, existe um número que vai de quatro a 10 enlutados.” Contudo, Tom também nota uma oportunidade de a sociedade reescrever esses rituais. “No luto e na morte, o mais importante são as ligações. Acho que o caminho é a conexão através das lembranças, do amor, das conversas. O luto gera empatia.”

E o meio virtual permite que as pessoas se façam presentes em vários momentos e circunstâncias. “O luto é um processo natural e que, muitas vezes, a gente minimiza: rompi um vínculo que é importante, que imaginei que era a minha vida. Isso me causa dor emocional e física. Essa tristeza, essa dor tem o seu tempo e, para cada pessoa, tem a sua forma. E, com o passar do tempo, conforme vai se organizando emocionalmente, a vida daquela pessoa começa a ganhar um novo sentido e uma nova dinâmica. A perda continua ali e vai continuar, mas em um outro espaço. Outros sentimentos também estão envolvidos na morte e no luto, como o amor, a conexão, a empatia.”

O pároco Manoel Sánchez, da Paróquia Nossa Senhora da Assunção, em Águas Claras, chegou a realizar missas de sétimo dia, virtualmente, velórios restritos e sepultamentos curtos, seguindo todas as orientações sanitárias. O número de intenções nas missas também aumento durante a pandemia. “Temos tentado dar o que nos é permitido de assistência aos enlutados. Todos nós somos corpo e espírito. Mesmo que a matéria morra, essa pessoa não acaba, ela continua viva. Então, rezar por ela é o que nós podemos fazer agora, um sentimento de esperança, de consolo. E é possível tirar da morte a vida. Isso acontece com muitas famílias, aproxima, é um momento de reconfigurar muitas coisas.”


Ponto a ponto // Luciana Mazorra

Rituais e as mudanças na despedida
A redução ou a eliminação dos rituais fúnebres tem consequências para o processo de elaboração de luto, bem como a impossibilidade de se despedir do ente querido. Os rituais representam um espaço protegido e autorizado para a expressão da dor, a possibilidade de receber apoio social, de homenagear o falecido e tentar atribuir sentido à morte. Além disso, é um ato organizado, previsível, em um momento em que o enlutado se sente desorganizado diante de uma notícia tão difícil, de uma realidade tão dura de aceitar. O psiquismo vai tentar lutar contra essa realidade e precisamos de um tempo para elaborá-la. As despedidas contribuem para a aceitação da realidade, que vai ocorrendo de forma gradual. Muitas instituições têm promovido o contato virtual, que, embora não seja igualmente reconfortante, facilita a despedida. Outro complicador do luto nesse momento, em razão da quarentena e do distanciamento físico, é que os enlutados acabam recebendo menos suporte social, os contatos são menos frequentes.

O luto hoje
Viver um luto neste momento vai ter impacto duplo. Além da perda do ente querido, já estamos vivendo um momento de luto coletivo, por conta de todas as perdas que estamos enfrentando diante de um mundo totalmente mudado, as perdas que são provocadas pelo distanciamento físico e o impacto que sofremos diante das milhares de mortes, sendo, portanto, uma sobrecarga.

Falar sobre morte
A sociedade contemporânea valoriza a produção, o consumo e nega a finitude e a morte. Quando enlutados, fazemos um movimento mais interno de olhar para a nossa dor, ficamos mais introspectivos, processando o que estamos vivendo, o que se opõe ao ritmo da sociedade contemporânea. Existe uma dificuldade da sociedade de tolerar a dor do outro, porque a perda do outro nos traz a notícia de algo que nos toca muito diretamente, nos toca naquilo que mais tememos. Se a morte puder ser tratada como algo mais natural, que faz parte da vida, lidar com ela será menos difícil. Ao falar sobre os sentimentos, o enlutado vai elaborando essa perda. O processo de luto requer ter que reconstruir o mundo que perdemos sem aquela pessoa. Também implica uma revisão da nossa própria identidade, porque ninguém é a mesma pessoa após uma perda significativa. De fato, todos vivemos perdas ao longo da vida. Essa é uma vivência comum a todos nós.

Adaptando a despedida
Claro que o luto é um processo muito individual, cada um vai viver à sua maneira, de acordo com a sua história de vida. É importante realizar rituais, mesmo que de forma virtual, na impossibilidade do presencial. Algumas pessoas têm optado por esperar ou fazer de outra forma quando possível. Fazer um ritual próprio, que faz sentido para a família, ou escrever sobre a pessoa. Quando sobrevivemos a uma situação tão difícil quanto perder um ente querido, de alguma forma, aprendemos a confiar em nossos recursos de enfrentamento.

Luciana Mazorra é psicóloga e cofundadora do Quatro Estações Instituto de Psicologia, que trabalha, desde 1998, com a formação e o rompimento de vínculos