“Tem dia que a gente acorda e entende o que aconteceu. Tem dia que parece que não é real. Estava conversando com o meu irmão e ele me mandou uma foto do sofá da sala, onde nossa mãe gostava de ficar deitada, dizendo que estava faltando alguém, que, às vezes, ainda acha que ela vai voltar. Não poder se despedir é muito doloroso.” O depoimento emocionado é da professora Rosemeire Ferreira de Andrade, 48 anos. Há pouco mais de um mês, ela e os seis irmãos perderam o alicerce da família: a matriarca Maria de Lourdes Andrade, 85 anos.
Em 30 de abril, a aposentada, que estava internada no Hospital Regional da Asa Norte (Hran), não resistiu à difícil batalha contra o novo coronavírus. No hospital, a aposentada morreu sem a presença e o abraço dos filhos, netos, bisnetos e tataranetos. Tinha com ela apenas o terço de uma enfermeira, pedido feito por Rosemeire para a equipe da unidade de saúde. Em quarentena, cada um nas respectivas casas, os familiares foram, aos poucos, informados por telefone.
“Costumava receber uma ligação por dia com o boletim da minha mãe, por volta das 12h. Na quinta-feira, eram 15h e não tínhamos notícias. Meu irmão estava angustiado. Estávamos todos em oração. Pela Igreja Católica, essa é a hora do terço da misericórdia. Quando o telefone tocou, era a doutora Isabel (a médica Isabel Cristina Castro Guimarães, do Hran) dizendo que minha mãe tinha vindo a óbito. Não foi fácil, porque a gente a tinha como referência. A questão do enterro foi complicada. Ela era muito amada, muito conhecida, tinha muitos amigos, que não puderam comparecer”, lembra a filha.
A pandemia também transformou a maneira com a qual nos despedimos. Famílias e pacientes isolados, velórios curtos e para poucas pessoas, caixões lacrados, restrições de todo tipo de contato. “A literatura nos mostra que quanto antes a gente puder oferecer um apoio para as famílias que passam por perdas, independentemente da situação, melhor será no médio e longo prazos. Na covid, temos uma situação bastante diferenciada, porque, normalmente, a gente encontra nos rituais de luto algo que ajuda as famílias a elaborarem a perda. Com o coronavírus, as pessoas ficam em isolamento, pensando que o ente querido está morrendo sozinho ou que pode morrer sozinho, sem ter tido a chance de conversar com o familiar, de trabalhar a possibilidade de finitude, de dizer o que quer dizer. É uma dupla perda: do ente querido e da chance de vivenciar o processo de enlutamento dos rituais. O impacto psicológico disso é grande”, analisa a psicóloga Larissa Polejack, coordenadora do Comitê de Saúde Mental e Apoio Psicossocial da Universidade de Brasília (UnB).
Guerreira
A última vez que Rosemeire esteve presencialmente com a mãe foi no início de março, para consultas médicas de rotina. A professora e uma irmã eram as responsáveis pelos cuidados de Maria de Lourdes. A aposentada morava na zona rural de Planaltina com o filho Valeriano. Quando foi internada no Hran, por conta do novo coronavírus, Valeriano também testou positivo e ficou alguns dias com a mãe sob cuidados médicos. “Ele mandava notícias, fotos e vídeos dela. Ele teve alta na terça-feira e, no mesmo dia, a doutora Isabel ligou explicando que o estado da nossa mãe estava evoluindo para piora e questionou qual era o desejo da família. Ali, a gente entendeu que era uma preparação para um possível luto. Fizemos questão de falar que ela sempre foi uma guerreira, a matriarca da família e queríamos o melhor para ela”, relembra a professora.
Naquele momento, o presente entendeu os possíveis desdobramentos futuros. Rosemeire sabia que, no caso de uma pessoa de 85 anos adquirir uma doença e ficar acamada, a tendência do quadro era de progressão. “A gente acredita em milagre, mas também sabe da realidade. Naquele momento, sabia que o risco de perder a minha mãe era maior. Mas, em momento algum, a médica tirou a nossa esperança e a nossa fé.”
No dia seguinte, a profissional de saúde telefonou para a professora e avisou que, após o banho de Maria de Lourdes, ela faria uma videochamada com a família. “Infelizmente, pelas condições da quarentena, por cada filho morar em um lugar diferente, não conseguimos reunir todo mundo. Mas, a médica achou importante e colocou minha mãe para conversar comigo e minha filha. Ela estava lúcida, me deu a bênção, falamos que a amávamos muito, que era uma pessoa maravilhosa. A gente via que ela estava muito cansada e, quanto mais tentava falar, mais se cansava. Então, pedíamos para ela só escutar. Perguntei qual era o desejo da minha mãe, e ela pediu para que rezassem por ela. Falei que estava todo mundo rezando. Mas, nunca falei no passado, sempre no presente. Agradeci tudo o que ela fez por nós”, conta.
Como a família é religiosa, uma sobrinha da professora deu a ideia de gravar um vídeo com um padre fazendo uma oração para a paciente, uma espécie de unção dos enfermos. “Conseguimos enviar para ela e os profissionais disseram que a acalmou. Eles ajudaram muito, foram muito sensíveis conosco.” Apesar de o luto ser diferente, de a filha não ter tido a oportunidade de segurar a mão da mãe e cuidar dela de perto, os detalhes da videochamada e da troca de mensagens fizeram a diferença. “Foi como um bálsamo para a minha vida. Se não tivesse sido feito, eu não teria o entendimento que tenho hoje, de que foi feito todo o possível pela minha mãe e de que havia um lado humano, acima de tudo, cuidando dela.”
"Mesmo a perda tão dolorosa vai servir como aprendizado. Estamos mais perto, porque ninguém imaginava uma coisa desse tipo"
Rosemeire Ferreira de Andrade, filha de Maria de Lourdes Andrade
Unidos pela dor
Algo a ser dito sempre restará. Mesmo com a chamada de vídeo um dia antes do falecimento da matriarca, Rosemeire reconhece que, às vezes, pensa no que deixou de falar. Algumas irmãs questionaram por que não tentaram ir até o hospital, mesmo sabendo que não seria possível ver Maria de Lourdes. Para outras famílias que, como a da professora, vivenciam um luto silenciado, distanciado e repleto de restrições de segurança, a professora pede para que não percam a fé e cuidem uns dos outros.
“Dê o maior amor que você puder, porque a gente não sabe o que vai acontecer. Foi tão repentino o que aconteceu com minha mãe, tão estranho, que a única coisa que a gente precisa ter nessa hora é fé, vai passar. Mesmo a perda tão dolorosa vai servir como aprendizado. Estamos mais perto, porque ninguém imaginava uma coisa desse tipo. Também é preciso viver o luto. Deu vontade de chorar, chora. Essa dor vai se transformar em saudade. E esse é um legado que minha mãe deixou: a fé e a união. Isso está sendo perpetuado mesmo com a partida dela.”
Nos cuidados paliativos, a psicóloga Adriana Jaime conheceu a família de Maria de Lourdes. Para a profissional, vivemos em uma sociedade na qual a morte é um tabu. Hoje, dentro de uma unidade de saúde, ainda é difícil trabalhar a perspectiva de finitude e de dar qualidade de vida em vez de curar. “Agora, estamos vendo a necessidade de os profissionais buscarem uma informação maior a respeito disso, entrando em contato com a própria finitude. O paciente passou a ser, para eles, uma potencialidade deles mesmos. O outro pode ser eu em algum momento também. Isso aguçou o emocional e aumentou as questões psíquicas”, comenta.
A equipe dos cuidados paliativos do Hran, cuja principal médica é Isabel Cristina Castro Guimarães, funciona como ponte entre família e paciente. Para isso, existe um protocolo estabelecido para a admissão do doente, composto por análise clínica específica, e que segue orientações mundiais. A partir da concretização do luto, de uma doença que ameaça a continuidade da vida, o que se pode fazer com isso? “Quando a gente entra em contato com a família, tentamos ir colocando a possibilidade dessa despedida, desse esclarecimento com relação ao diagnóstico, ao prognóstico, de muni-los de informação, de trabalhar o resgate de relações e também identificar os que precisam de mais suporte”, explica a psicóloga.
Adriana explica que, no caso da covid, existe, ainda, o medo do vírus. Não necessariamente a pessoa vai morrer, mas existe o temor da morte pela possibilidade do contágio, o luto antecipatório. Você já está trabalhando essas mortes. “Para o paciente, por mais que haja humanização, ele se vê como o número de um leito, com os horários do hospital, as intervenções, não sabe o que vai acontecer, pensa se está deixando as coisas em dia. São movimentos sociais, emocionais, financeiros e espirituais. Então, desde o diagnóstico, a gente vive vários pequenos lutos.”
Agora, o olho no olho não é mais possível, bem como a análise das reações emocionais, o poder do abraço. “Por telefone, por vídeo, por mensagens, vamos tateando para ver como a situação está. Entra muito a expertise”, acrescenta a psicóloga. Também entra em campo o trabalho em equipe dos psicólogos, dos profissionais do teleatendimento e do atendimento in loco, que conversam direto com o paciente. Adriana esclarece que é um cuidado personalizado. “O foco é tentar trazer o máximo possível de qualidade de vida naquele momento, e, para cada um, ela vem em um tipo. Às vezes, é no silêncio, é segurando a mão”, pontua.
Se a sociedade ainda não aprendeu a lidar com a morte, com o luto não seria diferente. Adriana aconselha dar espaço para as emoções. “Existe uma diferença grande entre o choro e o desespero. É preciso respeitar os altos e baixos. Cada pessoa funciona de uma forma diferente. Se tiver vontade de resgatar as coisas da pessoa que faleceu, ver álbum de família, escutar a música que ela gostava, faça isso. Tome cuidado com automedicações, é bom estar presente dentro dessa dor, porque, se a gente não vivencia esse momento, estará só postergando e, às vezes, de uma forma muito mais abrupta”, afirma. É importante, também, buscar suporte psicológico e psiquiátrico. “As pessoas enlutadas precisam de uma atenção não só no pós-óbito, mas, também, nas semanas seguintes”, acrescenta Adriana.