Cidades

'Precisamos pacificar o país', defende dom Marcony

O bispo auxiliar da Arquidiocese de Brasília comenta sobre o episódio que levou ao segundo fechamento da Esplanada e também sobre a posição da Igreja Católica em relação ao radicalismo de cunho político no país

Bispo auxiliar da Arquidiocese de Brasília, dom Marcony mantém a confiança de que o momento conturbado pelo qual passa a sociedade brasileira chegará ao fim. “Nós, cristãos, somos pessoas de esperança”, disse o religioso em entrevista ao Correio, após as ameaças sofridas por radicais bolsonaristas no início da semana. Dom Marcony acredita que a Igreja Católica tem a missão de pacificar os espíritos nesta crise tridimensional de ordem sanitária, econômica e política.

Sobre o episódio que levou ao segundo fechamento da Esplanada nesta semana, dom Marcony lembra que, em um primeiro momento, preocupou-se em preservar a integridade da Catedral e dos funcionários da Cúria. Só depois percebeu que ele próprio poderia ter sido vítima de um ataque. E cita uma frase, dita por um dos agressores, que traduz a violência a atormentar-lhes a alma: “O senhor não sabe com quem está falando, mas nós vamos voltar”. Dom Marcony demonstra compaixão em relação aos invasores — “Os integrantes daquele grupo são meus filhos também, como todo o Distrito Federal” —, mas adverte que não se furtará do dever de proteger um símbolo de Brasília e de seguir as regras preventivas estabelecidas pelo Governo do Distrito Federal.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou nota de solidariedade a Dom Marcony. A entidade católica também repudiou as ações extremistas no país e cobrou uma atuação firme das autoridades em favor da paz. “Esses grupos não podem continuar a desfigurar a democracia brasileira, com ataques às instituições, à religião e a quem mais não compartilha com as suas visões de mundo. Conviver com as diferenças é condição básica para a civilidade”, escreveu dom Walmor Oliveira de Azevedo, presidente da CNBB. A seguir, leia os principais trechos da entrevista de dom Marcony.

Como o senhor recebeu as ameaças de antidemocratas à igreja e à sua pessoa?
Num primeiro momento, recebi com certa apreensão. Mas é compreensível, devido aos nervos à flor da pele, no momento em que estamos vivendo, seja pelo coronavírus, seja também pelos aspectos políticos. E nós não ficamos fora disso. Depois, a gente entende que as pessoas querem que a sua vontade prevaleça. Mas, ameaças e pressão são coisas que ninguém quer passar. Depois que o clima se pacifica, a gente compreende o momento que todos estamos passando.

Não acha um desrespeito pessoas chegarem a atacar a própria igreja?
A pessoa quer alcançar um fim e, para alcançar esse fim, quase fica cega. Por isso, parte para agressividade, seja ela verbal ou material. Não pensei na minha pessoa. Fui 15 anos pároco da Catedral, passei por várias manifestações na Esplanada dos Ministérios (pacíficas e complicadas). O Correio tem um histórico disso. A Catedral é uma paróquia e, ao mesmo tempo, um monumento, um cartão-postal. Meu primeiro pensamento, ao chamar as autoridades públicas, era a possibilidade de alguma agressão ao templo, ao monumento e à própria Cúria, onde trabalham vários funcionários. Tenho de defendê-los. Depois, caiu a ficha de que podia ter uma agressão à minha pessoa. Eles não foram lá com a intenção de agredir, mas encontraram uma autoridade eclesiástica que tinha de dar uma resposta para eles. A resposta foi uma negativa e, consequentemente, houve uma reação — não necessariamente voltada a mim, poderia ser outro religioso.

O que falaram exatamente?
Eles estavam num grupo de cinco pessoas. Ficaram descontentes quando disse “não”. Eles foram pedir para que acampassem na área privada (próxima à Catedral). A PM nos procurou para saber se tínhamos dado autorização ao grupo. Disse que (a situação) não podia ir contra o decreto do governador (Ibaneis Rocha, que proibiu aglomerações). Foi quando o grupo nos procurou. Atendi com toda delicadeza, mas disse que não poderia permitir porque, inclusive, tínhamos acabado de fazer um protocolo com o GDF sobre abertura das igrejas e participação das pessoas em celebrações. Eu não ia descumprir o decreto do governo. Foi aí que um deles disse: “O senhor não sabe com quem está falando, mas nós vamos voltar”.

Dois dias de fechamento da Esplanada determinados pelo governador são suficientes para acalmar os ânimos? Não teme uma nova manifestação?
Agradeço a intervenção imediata do governador do DF. Acho que o clima vai se acalmar. Quando se dá um tempo, a cabeça fica no lugar, a pessoa reflete mais sobre as atitudes. Espero que não haja (atos como esse) nem para a igreja, nem para qualquer instituição. Os integrantes daquele grupo são meus filhos também, como todo o Distrito Federal. Não estamos aceitando um lado e desmerecendo o outro, ou vice-versa. Estamos aqui para buscar na paz e na harmonia o melhor para toda a sociedade.

A arquidiocese recebeu muitas manifestações de solidariedade? 
Sim, muita e quero aproveitar para agradecer a todos a solidariedade por  nossa igreja, mas gostaria de corrigir uma coisa: a arquidiocese jamais ficou sem ninguém à frente  desde a saída de Dom Sérgio para Salvador. Quem está à frente da arquidiocese é dom José Aparecido até o santo papa escolher o novo arcebispo de Brasilia

Esse radicalismo tem um tempo para acabar?
Esse aspecto diz mais respeito à segurança pública. A igreja não tem de responder pela segurança pública, tem de ajudar as pessoas. Compreendo que, mais do que buscarmos culpados, seja qual for a justificativa, nós temos de buscar as soluções. A solução é a igreja ajudar a pacificar este momento. Agradeço ao Correio pelo bem que faz para nossa cidade, no campo da informação, e a todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, estão lutando para que tenhamos harmonia.

Como analisa este momento de pandemia e de crise política? As pessoas, de fato, estão muito tocadas, de modo geral, ou esse clima na Esplanada é de grupos específicos?
Creio que são grupos específicos, mas cada um no seu nível. Também estamos com pressões dentro da família, devido ao isolamento e da própria questão do coronavírus, que nos impele a não ter uma resposta rápida para nossos problemas. Vivemos num mundo imediatista, diante de um vírus que não dominamos, que proporciona insegurança em todos os níveis. Essa insegurança, talvez, provoque em grupos uma reação imediata.

Muita gente, inclusive lideranças políticas, age de maneira equivocada também e, aparentemente, estimula esse tipo de reação. Há esse tipo de influência ou é questão individual?
Não cairia num julgamento. Creio que a gente tem de respeitar o espaço do outro. Há pessoas que têm atitudes por causa da pressão psicológica; outros ,da pressão política; e outros, da pressão econômica. O grande risco é que essas pressões, sejam quais forem, façam esquecer o ser humano, o respeito, o diálogo e a busca de soluções em que nós tenhamos sempre o equilíbrio em toda a sociedade.

A busca por esse equilíbrio está perto de acontecer, no que diz respeito à pandemia?
Nós devemos escutar as autoridades técnicas, científicas de saúde e, como consequência, as autoridades constituídas. Creio que não é uma coisa para já. Vamos ter que nos acostumar e aprender a viver com o que ainda nos domina (o vírus). Ainda não temos a vacina ou uma solução. Esse é o grande problema das pessoas, elas querem  prazos imediatos para tudo. Seja para satisfação pessoal, para a questão econômica, para saúde e até para a liberdade, bem ou mal interpretada. Vamos levar um tempo aprendendo o que a pandemia nos trouxe. Nós, cristãos, somos pessoas de esperança.

Os brasileiros têm levado em conta o que as autoridades sanitárias falam?
A nossa cultura é indisciplinada, sem ofensa a ninguém. Não é uma afronta aos outros, mas de falta de costume para seguir regras, horários, etc. E isso acontece também com as novas determinações que vêm com a pandemia, como lei para usar máscara, distanciamento, aglomerações. É o “pensar primeiro em mim”. É importante pensar no outro. Eu uso a máscara não só para me proteger, mas porque eu quero o bem do outro. A gente precisa aprender a pensar nos outros. O vírus atinge todos e todos temos de nos preocupar e ajudar a todos.

Estamos vivendo uma crise institucional no país?
Acho que não é por causa da pandemia. A polarização no país é antiga. Creio que se acirram os lados quando a gente não se une.Tem estado do Brasil que, mesmo de partidos diferentes, prefeitos e governadores se unem em torno do bem comum que é salvar vidas.  Precisamos nos unir porque estão morrendo pessoas. Pouco importa se é  uma ou mil pessoas. Estamos perdendo nossos jovens e velhos. Isso é fato. Devemos nos unir para ajudar a salvar pessoas. Vamos esquecer o lado pessoal e de grupos. O todo é o que importa. Não podemos deixar de dizer que as pessoas estão morrendo, que a situação é grave. Precisamos pacificar o país e buscar soluções. A partir dessa pandemia, sairemos  mais humanitários, pensando mais no próximo. Não falo de partidos, religiões, mas do valor da pessoa humana.