Correio Braziliense
postado em 01/06/2020 04:31
A quarentena não está sendo uma tarefa tão fácil. Há mais de 60 dias em isolamento social, muitos brasilienses têm recorrido a uma inocente taça de vinho ou uma cerveja gelada no conforto do lar. Segundo a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, o país registrou um aumento, em abril, nas vendas de bebidas alcoólicas. Foi de 38% em distribuidoras e de 27% em supermercados. Especialistas ouvidos pelo Correio alertam que a ingestão frequente e em grande quantidade de álcool pode ser prejudicial para o organismo humano, chegando a facilitar o acometimento por doenças.
De acordo com a médica Ana Helena Germoglio, o uso rotineiro de bebidas alcoólicas pode atingir diretamente o sistema imunológico. “Umas das principais células afetadas são os linfócitos, alterando tanto a sua ativação quanto a sua morte programada (apoptose). O uso crônico do álcool atinge uma de nossas principais linhas de defesa — o que, de certa forma, pode aumentar a predisposição a diversos tipos de infecção, incluindo as virais, como o novo coronavírus”, explica. “Obviamente, cada pessoa responde de forma diferente ao consumo de álcool, mas, como é sabido, tudo em excesso é veneno”, acrescenta.
Equilíbrio, portanto, é o melhor caminho, até mesmo para a saúde mental. “O vício alivia as dores, mas desperta a falta de controle. Quando alguém bebe muito, perde o domínio das ações e do comportamento. Além disso, há consequências fisiológicas. Para gerar o alívio, o álcool precisa destruir”, explica o terapeuta e especialista em inteligência espiritual Fabrício Nogueira. Ele defende que o consumo do álcool é uma fuga de si e dos vazios do ser humano. “Todos nós temos uma espécie de lacunas com as quais, muitas vezes, não conseguimos lidar bem. E no dia a dia, as pessoas procuram se sentir melhor; por isso, buscam amigos, relações saudáveis, hobbies, cultura, religião, arte, cinema, entre outros. Em época de isolamento, esses elementos suavizantes estão inacessíveis, então a pessoa vai canalizando tudo aquilo que a ajudava em alguns pontos específicos da vida, como a ingestão de álcool”, esclarece.
No início da quarentena, Thais Costa, 27 anos, adotou uma rotina diferente da que estava acostumada. O hábito de cozinhar passou a ser acompanhado de algumas taças de vinhos. “Em umas três semanas, eu percebi que tinha aumentado o consumo de álcool e que meu corpo estava mais inchado”, conta a estudante de medicina. Durante a semana, meia taça de vinho passou a ser uma cheia. Nos fins de semana, o consumo era ainda maior. “Como os artistas passaram a fazer shows on-line, acabava aproveitando esses momentos para beber ”, observa.
A preocupação com a saúde e a volta dos estudos fizeram a estudante mudar o comportamento. “Eu sempre tive costume de fazer atividades físicas no meu dia a dia, e percebi que estava sendo prejudicada com o consumo de álcool. Então, decidi parar. Fiquei uma semana sem beber nada e, hoje, a quantidade é cada vez menor”, relata. “Voltei a fazer ioga, a comer bem e a fazer atividades todos os dias”, completa Thais.
Efeitos
O fígado é órgão responsável por metabolizar o álcool, ou seja, ele processa a substância tóxica. “Quanto mais o fígado recebe álcool, mais rápido ele o metaboliza, e os efeitos no sistema nervoso vão perdendo a eficácia. Dessa forma, com o passar do tempo, o organismo se acostuma com a droga e vai criando resistência”, resume o professor de biologia Marcelo Padilha. “O álcool também promove o aumento da serotonina, que é considerado o neurotransmissor do prazer, da felicidade, ao mesmo tempo em que promove a liberação do ácido gama aminobutírico ou Gaba, um dos neurotransmissores inibitórios que temos no nosso organismo. Ele suprime a liberação de alguns neurotransmissores que têm a ver com a ansiedade, com inquietação, entre outros”, acrescenta Marcelo.
Para Moisés Silva, 24, o álcool funciona como uma fuga do estresse acumulado durante a semana. Estudante de educação física, ele tem uma rotina de treino e de alimentação balanceada de segunda a sexta-feira. “O consumo vem exatamente aos fins de semana. Geralmente, bebo quando tem algum artista que eu gosto fazendo live”, conta.
De acordo com a psicóloga Natália Carvalho, o uso recorrente do álcool não é, necessariamente, alcoolismo, mas um alerta para problemas pessoais. “Com o isolamento, nós temos observado um aumento no consumo de álcool, e essa exposição não vai determinar um quadro de alcoolismo, mas pode abrir precedentes. Por isso, o autoconhecimento é fundamental, porque faz com que a gente encontre ferramentas para descobrir outras possibilidades”, afirma.
- Cinco perguntas para Jorge Fernando Rebouças Lessa, psiquiatra
Qual a relação do aumento do consumo do álcool com a quarentena?
Muitas pessoas ficam mais ansiosas e angustiadas com isolamento e distanciamento social, com a redução ou a ausência de opções de diversão. Como o uso de etílicos está sempre presente e é quase cultural, torna-se uma opção de distração acessível. E basta observarmos em grupos de WhatsApp ou redes sociais das quais fazemos parte, sempre há postagens de fotos em situações que mostram o consumo de etílicos todos os dias da semana neste período.
O que o álcool pode gerar psicologicamente para a pessoa?
O álcool é uma droga lícita sabidamente causadora de dependência psicológica e química. Além disso, pode acarretar diversos problemas de ordem social e familiares.
Existe uma relação equilibrada e saudável com o álcool?
Vai depender muito da genética de cada pessoa; uns farão uso com até certa frequência sem que isso torne-se um problema; outros podem desenvolver um quadro de uso abusivo, em que já se observa prejuízos funcionais, como faltas no trabalho e brigas familiares; e, por fim, os que se tornarão dependentes pesados.
Como a pessoa pode observar que o consumo aumentou ou que há um desequilíbrio?
Geralmente, o indivíduo, nas fases iniciais, em que se contempla a bebida, minimiza a quantidade e frequência com que bebe; mas quando a própria pessoa, familiares, companheiros, passam a observar um aumento na quantidade e a frequência, ou quando se observa problemas secundários desencadeados pelo consumo de álcool, é um forte sinal de que algo está errado. Uma forma prática é analisar os gastos específicos para compra de etílicos.
Quais as possíveis consequências acarretadas pelo vício depois que a quarentena acabar?
Na verdade, os frutos começam ser colhidos antes do fim da quarentena. Prejuízos na qualidade do sono, na memória, no humor, nas interações sociais e no desempenho profissional. Isso, sem falar nos problemas de saúde desencadeados pelo uso de álcool: problemas hepáticos, digestivos, cardíacos, neurológicos, aumento considerável do risco de câncer de boca, língua, laringe, só para citarmos alguns exemplos.
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