Correio Braziliense
postado em 29/05/2020 13:53
Quase 20 anos após o início de uma árdua disputa na Justiça, chegou ao fim a batalha judicial entre Maria Luiza da Silva, de 59 anos, e a Força Aérea Brasileira (FAB). A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que a militar sofreu discriminação ao ser aposentada compulsoriamente nos anos 2000. Ela é a primeira transexual da FAB e, mesmo com um currículo exemplar, foi afastada das funções por ser considerada "incapaz" para o serviço militar por uma junta médica do órgão.
A decisão do dia 23 de maio é assinada pelo ministro Herman Benjamin e foi comemorada por Maria Luiza. "É importante para mim, mas também para a sociedade, por que visa a questão de direitos, de não discriminação. Isso fortalece os direitos individuais de cada pessoa, a democracia e o país", comenta.
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O advogado de Maria Luiza, Luiz Max Telesca, destaca que a decisão final sobre caso chega em boa hora. "Esse processo significa a afirmação definitiva de que o gênero não pode ser discriminatório. É muito salutar que o direito brasileiro continue confirmando direitos humanos e direitos à diversidade sexual ", comemora.
Primeira transexual da FAB
Maria Luiza nasceu José Carlos, mas nunca se reconheceu homem, o que lhe trouxe enormes transtornos na carreira militar. Em 2000, quando era cabo da Aeronáutica, veio o parecer do Alto Comando, que a diagnosticou como “incapaz, definitivamente, para o serviço militar”, mas “não inválido, incapacitado total ou permanentemente para qualquer trabalho”.
Maria conta que desde o início foi acuada e ameaçada por superiores. "Eu era pressionada a desistir do processo de mudança de sexo, me impediram de usar o fardamento, falar sobre isso ainda hoje é sensível para mim", diz.
Mesmo com a vitória na Justiça, a cabo chora ao lembrar dos últimos 20 anos. De lá para cá, Maria tentou diversas vezes retornar à atividade que exercia, a de mecânica de aeronaves. "No começo eu tinha muita esperança de que eles entendessem meu amor pela profissão e meu desejo de continuar trabalhando, mas não me deixaram", conta.
Ao longo dos 20 anos, a União recorreu nos processos envolvendo Maria Luiza ao menos dez vezes. Ela venceu todas, nas duas instâncias. Em 2010, o juiz Hamilton de Sá Dantas, da 21ª Vara Federal, mandou a Aeronáutica reintegrar Maria Luiza. Mesmo que na reserva, com soldo igual ao dos militares nunca reformados. A cabo, porém, não voltou à ativa por causa da idade. Já tinha completado 49 anos. O tempo de serviço, 30 anos, padrão adotados nas Forças Armadas, já havia transcorrido.
Sentada em frente a uma parede com diplomas e medalhas de honra ao mérito por bons trabalhos prestados ao país, ela diz que, apesar de tudo, ainda sente orgulho de ser militar. "Pra mim, a atividade militar era o meu sonho, sempre me deu muita felicidade. Ainda hoje eu vou lá visitar e relembrar, era, e ainda é, um trabalho que eu admiro demais", finaliza.
Filme e reportagens
O Correio acompanha o caso de Maria Luiza desde o início. Nos anos 2000, o jornalista Marcelo Abreu narrou a historia da militar em uma série de reportagens. Em 2019, um documentário foi lançado para relembrar a história da cabo. Dirigido por Marcelo Díaz, o filme tem 80 minutos e foi exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que aconteceu em novembro do ano passad, e em festivais na Holanda, México, Argentina, Colômbia e Estados Unidos.
A obra estaria nos cinemas neste momento, mas teve a estreia adiada por causa da pandemia do novo coronavírus. Em breve, estará disponível em streaming. "Eu acredito que o filme traz um olhar afetuoso e inclusivo. Como outras Marias Luizas, há uma imensa variedade de pessoas que acabam não tendo chances de ter uma vida minimamente justa", comenta. "Que isso possa estimular que o assunto seja discutido, não especificamente do ponto de vista do sofrimento, mas do direito. Direito a ser quem se quiser ser", finaliza.
O filme, inclusive, é citado no acórdão do ministro Herman Benjamin como parte da contribuição para o desfecho do caso. "Eu acredito que Maria Luiza merece reconhecimento pela militar que ela é, não pela militar que ela foi. Vai ser incrível se, no futuro, ela for reconhecida como uma pessoa que se diferenciou pela alta qualificação do serviço que prestou e que poderia estar prestando ao país", diz Marcelo Díaz.
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