A música
Tenho um amigo herege. Ele questiona a existência dos santos. Não desses de barro, mas dos que se equilibram na minha estante de discos de vinil. Vocifera, entre outras provocações, que João Gilberto é superestimado. E Caetano e provavelmente 90% do cânone da música popular brasileira, além dos malditos para quem dispara adjetivos que prefiro esquecer (perdão, São Macalé, e me desculpe, São Sampaio).
Eu quase sempre ignoro. Tive que aprender a rir de bobagens. Há amizades que valem mais do que qualquer idiossincrasia e muito mais do que os absurdos. Ele vai dizer que sou arrogante por usar uma palavra difícil e isso eu também vou ignorar, embora talvez até seja mesmo.
Sempre achei que há certa petulância na insegurança completa, na descrença exagerada em si. No fundo, não deixa de ser uma forma de exibicionismo ou um pedido velado de socorro, o que, em muitas vezes, dá no mesmo.
Mas, volto aos sons. Nestes tempos, tenho pensado no papel da música como método para manter a sanidade desde o começo da minha estada por aqui (no mundo). Nenhuma outra manifestação artística é capaz de me dominar como ela faz. Deve existir uma razão fisiológica. Algum estudo obscuro com certeza versa sobre a ação de determinadas frequências sonoras no tímpano e a extensão delas pelo corpo.
Amo a literatura, mas no fundo penso que tudo é música. Não sei tocar muito bem os instrumentos que tenho e componho mal de vez em quando. Agradeço por isso. Ajuda a preservar o mistério. O sagrado da linha de piano em um específico ponto de Cais, do Milton Nascimento, o copydesk brilhante de João Gilberto na letra de Lígia…
Gosto de escrever com música. Há quem diga que isso é se sugestionar e “há quem diga que eu não sei de nada”. Todos eles estão certos. Entretanto, a melancolia bruta de certas melodias é fundamental para que encontre um tom. Falo em melancolia e penso, sem razão direta, na felicidade, mas sei que é difícil fugir da lama nestes dias de caos. No Brasil de hoje, é muito complicado ser feliz. Ainda assim, e sabe-se lá por quê, todos — e vou me incluir — continuamos tentando e, vez ou outra, conseguindo.
Talvez ser feliz nem importe. Talvez a felicidade seja só o que sentimos quando nem sabemos o que está rolando. Uma vez, escrevi que a felicidade dói. Outra vez, disse que ela era uma mentira nefasta e cruel. Hoje, acho graça porque talvez a felicidade seja aquele acorde do piano de Cais ou o instante de paz numa praça do Uruguai quando notei que o antigo amor não dói mais nada. Talvez seja o ar — ou o milagre da propagação do som.
Tenho focado na beleza das coisas que não vejo. Tenho escrito uma coisa ou outra. Hoje, vencemos mais um dia e isso, meus amigos, é sempre muito.