Normalidade das instituições
Nelson Rodrigues, o nosso profeta do óbvio, disse que o traço distintivo da humanidade é a capacidade de se espantar. Sem essa percepção, o ser humano fracassa, renuncia e anda de quatro. E, no Brasil atual, tenho a impressão de que estamos perdendo, gradativamente e dramaticamente, essa consciência do absurdo.
O nosso presidente politiza a pandemia como se ela fosse uma questão ideológica. Ora, neste instante, não interessa direita ou esquerda. O Congresso Nacional entendeu o momento e superou essas divergências, em sintonia com as urgências da história.
Mas, para o presidente, que ignora totalmente a tragédia humana da pandemia, quem toma cloroquina é de direita e quem é de esquerda toma Tubaína. Ele fez essa gracinha no dia em que morreram quase 1 mil brasileiros. Os despautérios se acumulam em uma sucessão vertiginosa e atordoante.
Autoridades sustentam que as instituições democráticas estão funcionando. Eu não teria essa certeza. Diria que algumas instituições e algumas autoridades estão funcionando. Se as instituições agissem como deveriam não teríamos chegado a esse ponto de desconcerto.
Quando peço que as instituições e as autoridades não se omitam ante a grave crise na qual estamos mergulhados, em nenhum momento isso significa usurpar as atribuições dos outros Poderes. Significa, simplesmente, cumprir estritamente as suas respectivas funções e responsabilidades.
Dou alguns exemplos simples. Em Brasília, o Ministério Público exerce uma atuação de crucial relevância na defesa da vida ao exigir fundamentação científica para as decisões erráticas e contraditórias do governo local. Claro, os governantes ficam irritados, reclamam, esperneiam. Não importa, o MP existe para isso.
E mais: vejam o que ocorreu com a marcação de data para a realização do Enem. O ministro da Educação insistia em manter o calendário das provas, como se estivéssemos em um mundo normal e não em uma pandemia global. Mas o Senado colocou o tema em votação com o escore de 70 votos a favor do adiamento e 1 contra. Com isso, o governo teve de recuar para não sofrer uma derrota humilhante e decidiu prorrogar o prazo do exame.
Na América Latina, a Argentina, o Chile e o Uruguai administraram a crise de uma maneira muito mais competente e digna. Nenhum presidente fez campanha contra o isolamento social. É verdade que somos um país continental, mas temos mais recursos. Se tivéssemos trabalhado com mais responsabilidade, como fizeram esses países vizinhos, estaríamos talvez retomando as atividades econômicas, com alguma segurança.
O Brasil escala, rapidamente, o ranking dos países mais infectados pelo coronavírus. Não há mais tempo para omissões, procrastinações e medos. O que está em jogo, agora, é a vida das pessoas. Já passa de 20 mil o número de brasileiros mortos, e ainda não chegamos ao pico. Quem for irresponsável ou omisso será responsabilizado pelo genocídio. As instituições democráticas precisam funcionar.