Cidades

Crônica da Cidade

>> (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Palavras na bola de bilhar

 

Alguns pensamentos assustam. A morte está entre os principais. Há um tabu sobre o tema, principalmente no Ocidente. Quando criança, havia uma ideia relacionada à interrupção da vida que me intrigava. Ia e vinha como uma forma à deriva no oceano dos pensamentos, sujeita às correntes desconhecidas que, hora a levavam a atracar na praia da percepção, hora a levavam embora para as profundidades abissais do subconsciente. A ideia é: e se, sem que uma primeira pessoa soubesse, outra, desconhecida, em outra parte do mundo, perdesse a vida, e os acontecimentos decorrentes dessa morte, como o bater silencioso das asas de uma borboleta, pudessem reverberar pelo tempo e revolucionar por completo, em terrível tempestade, a existência do primeiro indivíduo?

 

Não uma consequência imediata, mas, sim, direta. E não a morte de alguém famoso, mas de um anônimo tão anônimo quanto o primeiro, provocando nos arredores mais próximos a onda de tristeza comum à nossa cultura, e nos mais afastados, o pesar sereno também já velho conhecido. O mundo é muito grande. E, ainda assim, as pessoas estão conectadas com os mais isolados dos seres humanos por menos elos do que imaginamos. Acredito nisso. Uma teia sobre bilhões de pessoas. A todo segundo, muita coisa diferente acontece. Inúmeras escolhas, descobertas, erros, acertos e arrependimentos.

 

Em meio a esse infinito número de portas que se abrem e se fecham batendo com o vento, e dada a drástica realidade que vivemos como espécie, recentemente, essa estranha ideia voltou a atracar nas costas da mente habitada com uma variável. E se fosse possível descobrir essa morte e percebê-la como importante, sem, no entanto, conseguir explicar tamanha compreensão dos fenômenos de causa e consequência? Por um motivo tão aleatório quanto o da própria morte em si, descobriríamos com um obituário enviado por um amigo por engano, ou uma notícia boca a boca que voou rápido demais, e olharíamos a foto alaranjada, ou sorveríamos com os olhos aquela elegia, cientes de que algo imperceptível mudou.

 

Entre os livros queridos, guardo um Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de Antônio Cândido da Cunha, uma das mais gratas heranças de meu pai. Lá está escrito “vírus, micro-organismo capaz de atravessar os filtros bacteriológicos, causador de inúmeras doenças aos animais e às plantas”.

 

A etimologia conta a história das palavras para compreender a origem de um termo. A palavra, em si, carrega a própria história, dita e alterada por muitas bocas. Escrita, impressa, rasgada, riscada na pedra, na água, no ar ou na areia. A novaiorquina Madeline Kripke, 76 anos, uma das maiores conhecedoras e colecionadoras de dicionários da história, morreu de coronavírus em 25 de abril. Levou consigo mais histórias de palavras que poderíamos contar. Talvez, alguns desses termos tenham se evaporado e nunca mais se repitam sobre a terra. Em A insustentável leveza do Ser, Milan Kundera descreve a vida de Tereza como o movimento de uma bola de bilhar que rola em decorrência do choque anterior que foi sua mãe.

 

Somos como palavras, alterações da versão anterior e, às vezes, desavisados das mudanças culturais, ganhamos um sufixo que não queríamos, ou não imaginávamos para nós. E como palavras e seres, somos, também, bolas de bilhar em alta velocidade sobre o tecido verde, levados pelos choques e impactos da vida em um estranho jogo que começou antes de nascermos, continuará depois da nossa morte e que nunca saberemos quem está jogando.

 

O taco da morte se move para trás e para frente com energia. Uma esfera se choca contra a outra, desvia de rumo e entra na caçapa. A segunda segue desgovernada e, no fim, aquela azul, esquecida no canto, eu ou você, voltamos a nos mover, e estamos rolando por aí...