Cidades

Crônica da Cidade

Trabalho misericordioso

A minha mãe era enfermeira, tinha obsessão de limpeza e sempre portava um frasco de álcool nas mãos para fazer a assepsia de objetos. Se estivesse viva, estaria na linha de frente do coronavírus e ainda mais preocupada em limpar tudo com álcool gel. Teria deduplicado os cuidados e a paranoia.

Quando admirava muito alguém, ela dizia: “Esta é uma pessoa misericordiosa”. Para ela, a compaixão era o valor mais alto e a maior distinção humana. É interessante porque Fernanda Montenegro também gosta muito de usar a mesma palavra apreciada pela minha mãe. Uma amiga de Salvador, diretora de teatro, que trabalha com crianças e adolescentes em situação de risco, me contou que Fernanda disse a ela: “Você faz um trabalho misericordioso”.

Ao acompanhar a batalha dos profissionais de saúde durante a pandemia, lembrei muito da minha mãe. Eles se arriscam todos os dias para salvar vidas. Alguns resolveram mudar-se de casa e evitar o contato com os filhos, as mães ou as avós, por amor verdadeiro. Ou seja: para não contaminar os entes queridos.

Assisti a uma entrevista de uma enfermeira que respondeu à pergunta: de onde tirava força para enfrentar uma batalha tão adversa? “Eu acho que quando a gente consegue ajudar alguém a se curar, isso nos dá uma força sobrenatural para continuar”.

Mas é inaceitável chamar ao pessoal da saúde de heróis e jogá-los no perigo, sem oferecer condições de trabalho decentes. Em vez de liderar churrascos ou boicotes às medidas de isolamento, o nosso presidente deveria convocar os empresários para produzir equipamentos de proteção.

E, depois de todo o risco que enfrentam, ao reivindicar condições dignas de trabalho, em manifestação pacífica, os profissionais da saúde ainda são agredidos por ignorantes. Perdoai aos ignaros, eles não sabem o que fazem. O trabalho de vocês, neste momento dramático, é misericordioso.

Dona Maria Celuta, a minha mãe, era do signo de leão, o trato com ela nunca foi fácil. Mas, ao longo da vida, ela cuidou de muita gente. A compaixão era um instinto e um ofício. E o fato é sempre apareceram, misteriosamente, verdadeiras anjas da guarda para cuidar dela quando precisou.

A minha mãe não era de efusões sentimentais. Preferia expressar e concentrar o amor em gestos, providências, cuidados e atos. Certo dia, a minha irmã contratou uma enfermeira para atuar como cuidadora de minha mãe, que morava sozinha em um apartamento na Asa Norte. Tentou ligar várias vezes para saber notícias e não conseguia.

Resolveu ir até o apartamento e, ao chegar, chamou: “Mãe, onde está você?”. A minha mãe apareceu em andar arrastado, com o clássico gesto de “psiu” no dedo indicador e fez a advertência sussurrada: “Silêncio, a cuidadora está dormindo”.