Cidades

Crônica da Cidade: No caminho, o coronavírus

''Viver é agora, meus caros. Com essa terrível realidade da covid-19, vamos vivenciar cada pedacinho do que nos resta''

Todos vocês devem ter uma lista de frustrações impostas pela pandemia. Queria falar de um dos meus 10 desejos adiados. Exatamente hoje, não fosse o coronavírus, eu estaria perto de concluir o caminho de Santiago. Eu e mais duas amigas peregrinas compramos passagens em longas e suaves prestações há seis meses, toda a tranqueira de equipamentos, iniciamos os treinos, viajamos em grupos de Instagram, Twitter, Facebook. Assistimos a todos os conhecidos filmes sobre a jornada de 790 quilômetros da França até Compostela, na Espanha. Enchemos o saco de amigos que já fizeram o caminho (Kátia, José Roberto e Carmen) para saber mais e mais sobre essa vibrante peregrinação que todos dizem ser inesquecível.

Não deu, o caminho ficou pra um dia qualquer, se ainda estivermos por aqui. O coronavírus atropelou os seus e os meus sonhos; devorou a inútil sensação de domínio sobre os meus atos e planos. Penso: como estaria agora chegando a Compostela com a Vieira na mochila, o cansaço físico, a histórica experiência, as fotos extraordinárias e a sensação de dever cumprido? Feliz? Muito provavelmente. Ou não. Poderia não ter conseguido cumprir as metas em todos os níveis, poderia ter ficado ainda mais frustrada do que com a covid-19. Poderia.

Essa sensação de impotência, de finitude, de poucas certezas tem, sim, seu lado bom. Porque nos põe no lugar e nos impõe o tamanho que devemos ter. Somos aquilo que a vida nos deixa ser. Um grande e amado amigo, hoje na sala inóspita de uma UTI, me diria, se estivesse ao meu lado tomando um vinho: programe-se para ir assim que isso tudo acabar, pare de querer escanear o futuro, vá e experimente enquanto há tempo. Torço, meu amigo, para que você em breve me diga pessoalmente que suas palavras fazem todo o sentido. E prometo que, se eu tiver a oportunidade, vou agradecer e celebrar em Cascia, na Itália, a sua vitória na luta pela vida.

Viver é agora, meus caros. Com essa terrível realidade da covid-19, vamos vivenciar cada pedacinho do que nos resta. Enxergar por cada fresta de janela, falar por todas as telas que restam, amar com mais força o próximo e nossa família. E quanto a Santiago, eu garanto que um dia percorrerei o caminho, depois que a quarentena passar.