Cidades

Crônica da Cidade

>> (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)


No caminho, o coronavírus


Todos vocês devem ter uma lista de frustrações impostas pela pandemia. Queria falar de um dos meus 10 desejos adiados. Exatamente hoje, não fosse o coronavírus, eu estaria perto de concluir o caminho de Santiago. Eu e mais duas amigas peregrinas compramos passagens em longas e suaves prestações há seis meses, toda a tranqueira de equipamentos, iniciamos os treinos, viajamos em grupos de Instagram, Twitter, Facebook. Assistimos a todos os conhecidos filmes sobre a jornada de 790 quilômetros da França até Compostela, na Espanha. Enchemos o saco de amigos que já fizeram o caminho (Kátia, José Roberto e Carmen) para saber mais e mais sobre essa vibrante peregrinação que todos dizem ser inesquecível.

Não deu, o caminho ficou pra um dia qualquer, se ainda estivermos por aqui. O coronavírus atropelou os seus e os meus sonhos; devorou a inútil sensação de domínio sobre os meus atos e planos. Penso: como estaria agora chegando a Compostela com a Vieira na mochila, o cansaço físico, a histórica experiência, as fotos extraordinárias e a sensação de dever cumprido? Feliz? Muito provavelmente. Ou não. Poderia não ter conseguido cumprir as metas em todos os níveis, poderia ter ficado ainda mais frustrada do que com a covid-19. Poderia.

Essa sensação de impotência, de finitude, de poucas certezas tem, sim, seu lado bom. Porque nos põe no lugar e nos impõe o tamanho que devemos ter. Somos aquilo que a vida nos deixa ser. Um grande e amado amigo, hoje na sala inóspita de uma UTI, me diria, se estivesse ao meu lado tomando um vinho: programe-se para ir assim que isso tudo acabar, pare de querer escanear o futuro, vá e experimente enquanto há tempo. Torço, meu amigo, para que você em breve me diga pessoalmente que suas palavras fazem todo o sentido. E prometo que, se eu tiver a oportunidade, vou agradecer e celebrar em Cascia, na Itália, a sua vitória na luta pela vida.

Viver é agora, meus caros. Com essa terrível realidade da covid-19, vamos vivenciar cada pedacinho do que nos resta. Enxergar por cada fresta de janela, falar por todas as telas que restam, amar com mais força o próximo e nossa família. E quanto a Santiago, eu garanto que um dia percorrerei o caminho, depois que a quarentena passar.