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Crônica da Cidade

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Brasil em transe


Nelson Rodrigues foi assistir ao filme Terra em transe, de Glauber Rocha, que estreava nos cinemas em 1968, com um amigo. A certa altura, o amigo perguntou ao nosso profeta do óbvio o que estava achando do filme e Nelson respondeu: “É um texto chinês, só que de cabeça para baixo”. O camarada riu muito, mas quando saíram do cinema esbarraram em Luiz Carlos Barreto, o diretor de fotografia de Terra em transe.

Claro que Barretão interpelou Nelson para saber a opinião do dramaturgo sobre o filme. Em um primeiro instante, Nelson refugou, mas, em seguida, considerou melhor perder o amigo do que perder a piada e fulminou: “É um texto chinês, só que de cabeça para baixo”. Barretão dobrou-se de rir e contou para Glauber, que adorou e se sacudiu em uma gargalhada.

No entanto, durante todo dia, o filme não parou de rodar na cabeça de maneira perturbadora. Até que, de repente, Nelson teve um estalo e viu o óbvio ululante: “Aquele filme era genial. Aqueles sujeitos se debatendo em danações hediondas, aquilo somos nós, aquilo é o Brasil de Os sertões, de Euclides da Cunha, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte para fazer sentido no Brasil precisa ser esta golfada hedionda”.

O explosivo Terra em transe, premiado no festival de Cannes, está fazendo 53 anos. Revi algumas cenas e nunca pareceu tão atual em face do dramático momento em que vivemos. O coronavírus parece ser uma metáfora do Brasil, contaminado pelo vírus da mentira, da desinformação e da fraude. Estamos em um país em transe, com um presidente desvairado que parece ter saído diretamente do filme de Glauber com as hordas em conspiração aberta contra as instituições democráticas.

Os índios são massacrados no campo sob o silêncio ensurdecedor da república. Em meio à crise, as instituições responsáveis pela defesa da democracia se omitem, vacilam ou procrastinam. Com isso, abre-se espaço para o delírio do autoritarismo.

Paulo Martins (Jardel Filho), o protagonista de Terra em transe, é um poeta e jornalista, uma consciência em transe. Não encontra amparo na esquerda dogmática nem na direita corrupta. E mergulha no desespero: “Olho pelas ruas e vejo o povo magro e abatido/Esse povo não pode acreditar em nenhum partido/Esse povo alquebrado, cujo sangue sem vigor/Esse povo precisa da morte/Mais do que se possa supor/O sentimento do nada que gera o amor/A morte como fé/não como temor”.

Em uma das cenas mais pungentes do filme, provocado por Porfírio Diaz (Paulo Autran), encarnação das forças ultraconservadoras, Paulo Martins vocifera: “Vocês venderam tudo. As nossas carnes, as nossas vidas, tudo, vocês venderam tudo. As nossas esperanças, o nosso amor. Vocês venderam tudo”.