Sempre
As mudanças, as grandes mudanças no mundo, elas nunca acontecem de uma vez. Mesmo as que duram apenas alguns meses. Às vezes, parece que o ser humano não está treinado para acompanhar os movimentos ínfimos, finos, paulatinos mas constantes, que, célula a célula se revelam em saltos e alteram a realidade. É como quando percebemos uma transformação brusca na paisagem da estrada depois de horas ao volante em um mesmo cenário. Ou como um broto de feijão que só se desenvolve quando não estamos olhando. E, treinada pela natureza para buscar a fantasiosa estabilidade, a espécie humana, vez ou outra, se vê diante dos estranhos movimentos da roda da história, que avança sem rumo, para sem explicação e recua sem sentido. Já aconteceu, acontece agora e acontecerá novamente.
No fantástico livro Entre uma rocha e um lugar difícil, o alpinista Aron Halston conta sua experiência ao cair, durante uma escalada, e ficar com o braço preso entre um paredão e uma rocha. Ele usou um canivete para cortar o próprio membro depois de 127 horas sem socorro. Halston traça a trajetória da rocha, vítima estática do movimento geológico do planeta, criada por milhares de anos de impactos de meteoros na formação do planeta, fustigada pelo sol e pela chuva, pelas alterações continentais, até ter a forma e a instabilidade necessárias para rolar em um incidente inesperado e aprisionar um jovem esportista e mudar toda uma percepção de mundo, de vida e de sonhos.
Já no livro A peste, o filósofo e escritor francês Albert Camus, por sua vez, fala sobre o avanço fictício da peste bubônica em Orã, no litoral mediterrâneo da Argélia. A doença, provocada por uma bactéria presente na pulga dos ratos, esmaga uma cidade, fecha estabelecimentos, fale o sistema de saúde e, na sequência, o funerário. Quem está fora não entra, quem está dentro, não sai, e os amantes e familiares esticam e afinam, impotentes, seus laços de afeto. Habilidosamente, Camus descreve a grande tragédia como algo lento, longo, tedioso, mas inexorável, que obriga a população impotente a viver a vida sob o martelo da doença, enquanto se transforma e vê o mundo se transformar.
Juntas, as duas obras podem traçar um panorama da crise do novo coronavírus na vida das pessoas. O ser humano se encontra entre as paredes de casa e o lugar difícil das próprias emoções mas, na fluidez dos pensamentos, é difícil saber o que cortar. Estamos diante de um espelho que nos desnuda como povo, e confusos sobre o desconhecido vírus e a extensão de sua sombra, que paira em movimentos acelerados, cada vez mais longa a cobrir cidades em todo o mundo, apartando amigos e parentes. Nossas fraquezas sociais ganham contornos claros, enquanto antigas convicções de pedra derretem sob o fogo brando dos acontecimentos. Difícil avançar, impossível retroceder, incerto o destino. Sempre.
Ora, se viajamos de carro, é certo que a paisagem se transformará, e se o pequeno grão cedeu sob a força interna, um pequeno talo ostentando tímida folha há de amostrar-se. Da mesma forma, sempre foi questão de tempo que um vírus causasse uma epidemia ou pandemia e nos curvasse e transformasse a todos. Sempre foi questão de quando. É um resultado da vida. Da nossa vida, como humanidade. E então estamos mais próximos do que podíamos imaginar. Mais conectados do que acreditamos.
Claro, ainda leva tempo até que as cortinas revelem o novo mundo em que todos viveremos. Mas ao menos parte desse novo mundo ainda será fruto das nossas ações e transformações de agora, de como nos enxergaremos durante a tempestade. Impossível não sentir o medo e a tristeza das mudanças que a natureza nos impõe. Impossível não sentir frustração ante os presentes que a vida nega. Impossível, também, voltar atrás. Nessas horas, é importante lembrar que o presente é estar vivo, e se proteger para permitir que outros também vivam. É preciso aguentar firme também. E lembrar que nada permanece. Sempre foi assim e sempre será.