Cidades

Crônica da Cidade

Aquarela de Brasília

Na passagem dos 60 anos de Brasília, o Clube do Choro nos brindou com um belo clipe da música Aquarela de Brasília, de Henrique Neto. Sempre percebi o chorinho como um gênero da intimidade. Em contrapartida, o rock seria público. Mas, ao assistir ao vídeo, me dei conta de que ele funciona muito bem como trilha sonora da cidade espacial. Aquarela de Brasília é um voo delicado sobre a cidade. 

É pena que a pandemia nos atrapalhou, mas, mesmo em confinamento, a passagem dos 60 anos de Brasília nos convida a celebrar, refletir, reconhecer, rever e projetar.  Tenho a impressão de que o segredo da vitalidade do Clube do Choro é o de ser um projeto que alia arte e educação. Em Brasília, o choro é, a um só tempo,  passado,  presente e futuro. É Jacob do Bandolim, é Hamilton Holanda e é a garotada.  E isso acontece graças à Escola Raphael Rabello.      

Aquele chão do Clube do Choro é sagrado. Tive o privilégio de assistir a shows memoráveis de Hermeto Paschoal, Armandinho Macedo, Altamiro Carrilho, Hamilton de Holanda, entre outras feras. E os alunos tiveram a graça de tocar com alguns eles. O Clube e a Escola de Choro são integradas, por isso saem tantos músicos bons de lá. O clipe mostra como o choro é um espaço de interação entre as gerações.  

Nos tempos de adolescência, Reco do Bandolim era roqueiro e tinha o apelido de Jimi Reco, pois adorava Jimi Hendrix. Trocou o rock pelo choro, mas continuou a ser um baiano elétrico, dinâmico e tenaz. Com presciência, percebeu que em uma cidade nova, planejada e artificial, a cultura precisa de instituições para florescer. E, por isso, criou a Escola de Choro Raphael Rabello. Mas, para transformar o sonho em realidade, enfrentou batalhas duríssimas contra a burocracia, a inércia e a ignorância. Nem os amigos acreditavam que seria possível ultrapassar as barreiras. 

Só venceu porque é um Dom Quixote baiano, utópico, mas pragmático. Antes da Escola Raphael Rabello, chorinho era "música de velho"; depois, a cidade passou a ser ocupada por uma legião urbana de crianças e adolescentes, armados de cavaquinhos, bandolins, violões de pandeiros.  O Clube do Choro é um exemplo de resistência, parece aquela flor do cerrado que vence a aridez, as pedras e o terreno inóspito.

Em tempos de pandemia, a Escola Raphael Rabello não parou; os alunos têm aulas virtuais. Não apenas nessa, mas, em outras situações, Reco sempre tira da cartola alguma solução criativa para que as coisas permaneçam funcionando. Mas isso tem limites.

Se recebo um visitante, não levo ao gabinete de nenhuma excelência; levo à Catedral Metropolitana, ao Palácio do Itaramaty, à Igrejinha da 308 Sul,  aos jardins de Burle Marx e ao Clube do Choro. É uma instituição que nos representa.  Mas, além de ser celebrada, precisa ser apoiada com patrocínios para continuar e ampliar o trabalho que faz de cultivo da música e de educação. Ela é um viveiro de talentos. 

Brasília tem tantos instrumentistas bons por causa da Escola Raphael Rabello e também porque Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Bide da Flauta e Pernambuco do Pandeiro sempre sopram no ouvido alguma exigência ou inspiração. Chorinho parece canto de passarinho, voo de beija-flor ou drible de Mané Garrincha.