Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 6 de dezembro de 2012 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram.
Nem o tempo o esquecerá
Oscar Niemeyer Ribeiro de Almeida Soares projetou se não todas, quase todas as formas arquitetônicas que compõem uma cidade:casa,igrejas, escolas, pontos de ônibus, universidades, prédios comerciais, prédios públicos, quartel, cassino, casa de baile, palácios, pontes, torres, relógio de sol, praças, monumentos, coretos. Uma superquadra para a França, uma ilha de lazer para os Emirados Árabes e até uma cidade inteira, projetada para o Deserto de Neguev, em Israel — três projetos de urbanismo que ficaram na prancheta.
Não projetou Brasília porque não quis. Juscelino Kubitschek o convidou para a tarefa antes de decidir, por sugestão do arquiteto, por um concurso público. Niemeyer teve papel definidor na escolha do júri, Também foi ele quem não deixou que o concurso fosse cancelado, como se chegou a discutir depois da vitória de Lucio Costa. A alegação para o cancelamento era a de que o tempo não havia sido suficiente para se avaliar a contento todos os 26 projetos concorrentes.
O que movia Oscar Niemeyer não era a vida em si mesma, era a arquitetura que lhe dava vida. Com ela, por ela e para ela viveu mais de 75 dos seus 104 anos 11 meses e 20 dias. Foi o que deixou escrito em letras de concreto e em dezenas de escritos, nos quais registrou acontecimentos, pensamento e obra.
O homem que espalhou curvas em 49 cidades de mais da metade dos estados brasileiros e em quatro continentes cultivava com devoção amigos e namoradas
radas, vinhos e cigarrilhas, não sabia acumular fortuna, foi stalinista até o fim, protegeu amigos e familiares até a morte e soltava palavrões com a mesma facilidade com que riscava projetos.
Raros os arquitetos que conseguiram construir tantos projetos — são mais de 500, desde a Orla do Berço,no Rio de Janeiro, o primeiro que assinou sozinho, em 1937. No ano anterior, havia participado da equipe liderada pelo arquiteto Lúcio Costa que,do risco do franco-suíço Le Corbusier, desenvolveu o Ministério da Educação e Saúde Pública, atual Palácio Gustavo Capanema, também no Rio.
Foi amigo de grandes nomes da história contemporânea. De José Saramago, Fidel Castro,Vinicius de Moraes, Luís Carlos Prestes, Di Cavalcanti, Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar. Viveu rodeado de boêmios anônimos que o acompanhavam como súditos de um rei boa praça. Para que ele pudesse trabalhar na França,durante aditaduranoBrasil,o presidente Charles De Gaulle baixou um decreto abrindo o mercado de trabalho francês para arquitetos estrangeiros.
Recebeu todas as grandes honrarias de sua profissão, desde o prêmio Pritzker, o mais cobiçado, até o de membro honorário da Academia de Artes da (extinta) União Soviética e da Academia Americana de Artes e Letras, quando os dois países ainda viviam em guerra fria.
Sobre ele já se escreveu mais de uma centena de livros e outras tantas teses acadêmicas. Foi intensamente amado e igualmente odiado. Amado pela ousadia com que riscou o ar com formas livres e sinuosas em concreto armado. O dia do pela falta de funcionalismo de suas obras, pela repetição e empobrecimento das produções das últimas duas décadas e por monopolizar as obras públicas de Brasília.
Mas nenhum desacerto nem a soma deles vai tirar de Oscar Niemeyer seus extraordinários méritos. Foi tamanho o espanto que sua arquitetura produziu no mundo que um adolescente chamado Wim Wenders decorava a parede de seu quarto, nos anos 1950,com fotografias das obras de um arquiteto brasileiro numa cidade que estava sendo construída no meio da selva de um país tão pobre quanto continental.
Já em 1950, o crítico de arte norte-americano Stamo Papadaki publicava um estudo sobre ao brado brasileiro.Seis anos mais tarde,integraria o júri que escolheu o projeto de Lucio Costa para a nova capital. Depois de Pampulha e das obras públicas de Brasília, seus mais importantes projetos, Niemeyer foi desenhar curvas no exterior.
Estava na Europa quando veio o golpe militar de 1964. Das muitas histórias sobre si mesmo que gostava de repetir, uma delas era de ter sido entrevistado pela revista Manchete e ter sugerido ao repórter que lhe fizesse a seguinte indagação: “Pergunte quem são meus melhores amigos.” Ao que teria respondido: “Luís Carlos Prestes, Juscelino Kubitschek, Darcy Ribeiro e Marcos Jaymovitch [arquiteto]. Cito - os porque, além de serem meus amigos, estão na adversidade e, neste momento, é que a amizade deve estar presente e se manifestar”.
Trouxe 15 amigos para lhe fazer companhia na solidão do Planalto Central. Seu escritório, na Avenida Atlântica, Rio de Janeiro, era o destino certo de uma turma que gostava de arquitetura, política, álcool e mulheres. Conversavam, bebiam, fumavam e faziam sexo com as moças que os visitavam.
Findo o concurso do Plano Piloto, Niemeyer ofereceu uma festa para o júri composto de respeitáveis arquitetos e críticos de arquitetura europeus e americanos. Foi na casa do amigo Mario Catrambi. Di Cavalcanti levou suas mulatas. Ari Barroso estava lá. Ao todo,10 homens e seis mulheres. “Mario avisou logo: ‘No jardim,ninguém pode ir nu’. Mas foi na sala,nos quartos, no interior da casa, que a festa se realizou”, contou o arquiteto em As curvas do tempo. “Não posso me queixar, — ele escreveu — tive muitas possibilidades. Eu só fico um pouco inquieto em relação à própria vida: é um sopro, é um minuto.”
Niemeyer foi um namorador incansável,se casou duas vezes, a primeira com Annita Baldo, união que durou 76 anos, e com quem teve a única filha, Anna Maria, morta em 2012 e a segunda com Vera Lúcia Cabreira, sua secretária. Deixa quatro netos, 13 bisnetos, nove trinetos e uma arquitetura que nem o tempo vai esquecer.
Os passos da eternidade
Os principais representantes do Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiros destacam a importância do arquiteto para a história do país. A presidente da República chama a atenção para a genialidade de Niemeyer e o governador Agnelo ressalta ser preciso preservar sua obra.
O poder faz reverência ao gênio
Apesar da agonia que durava mais de um mês,a notícia da morte de Oscar Niemeyer consternou Brasília em uma noite chuvosa. A presidente Dilma Rousseff divulgou nota oficial lembrando uma frase do arquiteto: “A gente tem que sonhar, se não as coisas não acontecem”. Segundo ela, “poucos sonharam tão intensamente e fizeram tantas coisas acontecer como ele”. Dilma citou ainda avervesocialistadoarquitetoeafirmouque o Brasil perdeu um dos seus gênios. “É dia de chorar sua morte. É dia de saudar sua vida”,completou (leia a íntegra da nota ao lado).
Para o governador do DF, Agnelo Queiroz, “Brasília chora por Niemeyer o mesmo choro sentido e saudoso dos órfãos”.Agnelo afirmou também que os brasilienses devem,a ele,“agraçade habitar uma cidade monumento patrimônio cultural da humanidade”.O governador convidou,na nota oficial,os brasilienses a admirar Brasília constantemente. E encerrou com uma saudação: “VaicomDeus,mestre Oscar”.
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa,divulgou nota expressando “consternação” com a morte de Niemeyer e destacou a simplicidade do gênio. “Homem de hábitos simples, notabilizou se pela defesa dos ideários de liberdade e a busca incansável pela dignidade da gente brasileira.”
O presidente do Senado Federal,José Sarney (PMDB-AP), declarou que “Oscar Niemeyer marca um tempo da história do Brasil”. O peemedebista citou que o arquiteto foi coerente como artista e como ser humano. “Se a arte brasileira tem seu reconhecimento internacional, é na extraordinária presença que Oscar Niemeyer deixa no mundo inteiro, como seu gênio e sua capacidade de invenção e de reinvenção a qualquer tempo.”
O senador Aécio Neves (PSDB MG) declarou que o país perdeu um dos mais importantes brasileiros da história. “Não há outras palavras para defini-lo: Niemeyer era simplesmente genial, talento puro,ousadia e inquietude e também inspiração permanente. A sua obra tem o exato tamanho do autor, que teve uma trajetória exemplar, sempre coerente com suas ideias e convicções.”
Comunista durante o período da ditadura militar, o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) resumiu em uma frase o seu sentimento: “Ele parecia eterno e, no fundo, ele é”. O tucano lembra que conheceu obras de Niemeyer em Paris,na Argélia e em diversos pontos do país. “Ele era profundamente brasileiro e imensamente universal”,resumiu.
O ex-presidente do STF Ayres Britto também reverenciou Niemeyer. Para ele, o arquiteto era “um otimista radical,e Brasília, particularmente,por um modo especialíssimo,perpetuará a memória dele”.Ayres ainda lembra do primeiro impacto provocado quando viu a Catedral de Brasília, nos anos 1970. “Eu disse para mim mesmo: meu Deus, que buquê de cisnes”. Outro ex presidente do tribunal, Gilmar Mendes afirmou que a arquitetura brasileira foi projetada no mundo todo por causa de Niemeyer. “Ele dignificou o povo brasileiro”, acrescentou Marco Aurélio Mello.
O presidente da Embratur, Flávio Dino, filiado ao mesmo partido de Niemeyer, o PCdoB, lembra da última vez que o viu, em 2010, na inauguração do prédio da União Nacional dos Estudantes(UNE),no Rio.“Eu disse que era do Maranhão, e ele afirmou: terra de Maria Aragão, médica e grande comunista. Ela era amiga de Luís Carlos Prestes e o Niemeyer lembrava dela com clareza”,espantou-se Dino.
O governador de Pernambuco, Eduardo Campos(PSB),ressaltou,além da genialidade no traço, as convicções firmes que Niemeyer manteve ao longo da vida. “Niemeyer viveu uma vida muito intensa,caracterizada,inclusive, por uma militância política muito comprometida”,enalteceu. O presidente da Confederação Nacional da Indústria(CNI), Robson Braga, declarou que “o homem se foi, mas Brasília e outras obras primas espalhadas pelo país e pelo mundo eternizam o traço das curvas livres, sempre bonito e surpreendente, e do concreto armado”. O governador de Minas, Antonio Anastasia, declarou luto oficial pela morte do arquiteto.
Consternação entre os políticos
Parlamentares exaltam o legado
A morte do arquiteto Oscar Niemeyer comoveu aqueles que trabalhavam ou se divertiam na noite da capital. Mesmo sob chuva, teve gente que fez questão de tirar fotos em frente aos monumentos projetados pelo mestre, como a Catedral e a Igrejinha
Brasília chora a perda do seu criador
Enquanto a morte de Oscar Niemeyer era anunciada no Rio de Janeiro, começava a chover em Brasília. Alguns dos seus mais famosos monumentos eram lavados pela água que caía do céu na cidade que ele ajudou a construir. Nem o mau tempo espantou os brasilienses e brasileiros de todos os cantos do país que quiseram fazer uma última homenagem ao arquiteto visitando algumas de suas obras de arte erguidas na capital de todos os brasileiros.
Em meio à chuva, o militar Dalmo Reis, 29 anos, da Força Nacional de Segurança, admirava e fotografava a Catedral de Brasília. Ele não se cansava de elogiar a beleza daquele e de outros prédios construídos por Niemeyer. “A cidade é toda bem definida. Em todos os lugares que vamos, vemos o dedo de Niemeyer. Acredito que as pessoas vêm visitar Brasília justamente por causa dos monumentos dele”, comentou o piauiense, que mora em Brasília há dois anos.
A morte de Oscar Niemeyer mexeu também com aqueles que haviam saído de casa para se divertir, como a servidora pública Dalila Figueiredo, 57 anos, e o bancário Fábio Cavalcanti, 50. Eles escolheram jantar no restaurante Oscar — batizado em homenagem ao arquiteto e construído no Brasília Palace Hotel, uma das obras do mestre (leia Para saber mais) — sem saber da morte de Niemeyer. Lá, quando eram servidos, tomaram conhecimento da triste notícia.
Moradora de Brasília há 35 anos, Dalila destacou diversas virtudes do arquiteto. “Admirava vários ângulos de Oscar Niemeyer. Ele foi desbravador, fiel comunista, inovador e abriu a consciência da sociedade por meio da arte e forma de viver”, afirmou. Fábio aumentou a lista de admirações. “Adoro as linhas modernas dos prédios dele.Três pessoas foram fundamentais para a construção da cidade e marcaram a identidade visual de Brasília: Athos Bulcão, Lucio Costa e Oscar Niemeyer, que mais se destacou.”
Assim que soube da partida do arquiteto, um grupo de paraenses, que passa a semana em Brasília a trabalho, fez questão de deixar o restaurante nordestino onde estava para tirar fotografias em frente à Igrejinha da 308 Sul, uma das obras-primas de Niemeyer. “O esforço do Niemeyer foi imensurável. Tudo que ele fez influenciou a vida da gente, não só de Brasília nem do Brasil, mas no mundo todo. Ele é um exemplo de brasileiro, pois lutou contra a ditadura no país”,frisou o advogado Wesley Loureiro, 35 anos. “O mais interessante é que ele fez Brasília para o homem, diferentemente das outras cidades que já existiam. Ele pensou no homem e em suas
necessidades”, e mendou o amigo e matemático Jorge de Castro, 41 anos.
Inspiração
A obra de Oscar Niemeyer inspirou gerações Brasil a fora. Nas faculdades de arquitetura, muitos jovens escolheram seguir a carreira contagiados pelos traços marcantes do carioca de 104 anos. Minutos depois de o Hospital Samaritano divulgar a morte do arquiteto,o assunto já dominava as mesas de bar e eventos realizados na noite de ontem no Distrito Federal.
A estudante de arquitetura Daniela Menezes, 25 anos, lembrou do legado deixado por Niemeyer e revelou que escolheu a profissão sob total influência do artista. “Ele foi um ídolo. Por causa dele, decidi fazer arquitetura. Cresci em Brasília e tenho muito orgulho dos feitos desse homem admirável. As formas da cidade são geniais. O que mais me chama a atenção é a estética”, ressaltou.
Enquanto trabalhava, o comerciante Stéfano Moraes de Vasconcelos, 33 anos, lamentava a morte do arquiteto. Nascido em Brasília, ele se orgulha de trabalhar em uma construção idealizada por Niemeyer, a Rodoviária do Plano Piloto. “Meu pai tem a lanchonete desde que nasci. Oscar Niemeyer foi muito importante para Brasília, para o Brasil e para o mundo”, destacou Stéfano, que passa boa parte do dia tendo como vista a Esplanada dos Ministérios, onde está o maior conjunto de obras de Niemeyer.
Luto entre os artistas
O poeta Ferreira Gullar, 82 anos, nunca pisou em Argel, mas se inspirou nas imagens da cúpula da mesquita projetada por Oscar Niemeyer para criar o poema Lições de arquitetura. Entristecido, Gullar lamentou a morte do amigo e lembrou que 50 anos de amizade permitiram que conhecesse um homem generoso e solidário. “O que ele ensinava, sobre tudo, era a modéstia, a simplicidade e a solidariedade”, diz o poeta. “Ele era um amigo solidário e presente em todos os momentos, era muito afetuoso. O que eu guardo do Oscar é essa lembrança do ser humano, do homem, da pessoa que foi comigo, sempre generoso e próximo nos momentos mais difíceis.”
Para Gullar, Niemeyer reinventou a arquitetura. “Mudou a arquitetura do mundo. A linguagem da arquitetura moderna era uma e depois do Oscar tornou-se outra.” Para o artista plástico Cildo Meireles, 64 anos, o arquiteto deixa, sobretudo, uma lição de coerência. “A maneira como ele se comportou quando a ditadura atingiu o Brasil foi um exemplo de dignidade e postura. Ele sempre se posicionou claramente e, naquele momento, isso foi um grande alento”, lembra Meireles, que morou em Brasília nos anos 1960.
ARTIGO / MARIA ELISA COSTA
Oscar & Lucio
Pela circunstância de ser filha de Lucio Costa, conheci Oscar tão pequena que nem sei se as lembranças que tenho são de fatos ou de fotos. Foi em Nova York, quando foram projetar o Pavilhão do Brasil para a Feira Mundial de 1939.
Nas trajetórias dos dois, houve quatro interseções, e o Pavilhão do Brasil foi a terceira delas. A história é conhecida: houve um concurso para o projeto, Lucio ganhou o primeiro lugar, e Oscar, o segundo. Ao perceber no projeto de Oscar ingredientes novos, sobretudo em relação à liberdade da implantação do edifício, Lucio o convidou para juntos elaborarem, em Nova York, um terceiro projeto, que revelou ao mundo que ao sul do Equador alguma coisa inesperadamente rica estava acontecendo.
A interseção precedente ocorreu no edifício do antigo Ministério da Educação e Saúde,hoje Palácio Capanema, projetado em 1936 e ainda em construção por ocasião da Feira Mundial de Nova York. Houve um concurso para o projeto da se dedo ministério recém-criado, cujo titular era o mineiro Gustavo Capanema,homem sensível e inteligente. Insatisfeito com o resultado do concurso, pagou os prêmios mas o anulou, e convidou Lucio Costa pessoalmente para fazer o projeto. Lucio houve por bem montar uma equipe, e além de seu sócio, Carlos Leão, convidou Afonso Eduardo Reidy e Jorge Moreira, que haviam participado do concurso, Ernani Vasconcellos, apedido de Jorge Moreira, de quem era sócio, e Oscar Niemeyer (que na época estagiava no seu escritório).
Consciente de que aquela seria a primeira oportunidade mundial de se construir um edifício de grande porte de acordo com a doutrina de Le Corbusier, Lucio recusou-se a começar a obra sem o aval do mestre. Capanema terminou por levá-lo ao Catete, para que pleiteasse a causa diretamente como presidente Vargas. Diante da apaixonada insistência do jovem arquiteto, Getúlio acabou concordando: “Se é tão importante assim, tragam o homem!” E o “homem” veio de Graff Zepelin, permanecendo no Rio por quatro semanas e tendo à sua disposição um moço discreto que desenhava bem, chamado Oscar Niemeyer Soares.
A terra fértil do talento de Oscar recebeu ao vivo a semente corbuseana, e com a liberdade do trópico gerou belos frutos, livres e saudáveis, que deixaram marca definitiva no sotaque brasileiro do movimento moderno – Lucio costumava dizer que Le Corbusier era a força, Mies Vander Rohea elegância, e que o Oscar introduziu a graça.
A presença dele no escritório que Lucio tinha com Carlos Leão em 1935 foi a primeira interseção direta entre as trajetórias dos dois. Era uma época de trabalho escasso, já que a clientela antiga queria casas “de estilo” que ele já não fazia mais. Assim, quando Oscar procurou o escritório,lhe foi dito que não havia condições de contratá-lo. A surpreendente resposta foi nada menos do que “então eu pago para trabalhar”! Ficou acertado que evidentemente ele não pagaria, e que frequentaria o escritório pelo tempo que quisesse, como uma espécie de estagiário, sem remuneração.Assim, quando houve o episódio do Ministério, ao saber que o sócio do Jorge Moreira seria incluído na equipe, Oscar reivindicou a sua própria inclusão, o que, a meu ver, revela o quanto, desde então, já tinha plena consciência do seu talento.
Vinte anos depois do Ministério, aconteceu Brasília, último encontro profissional entre Lucio Costa e Oscar Niemeyer.
Lucio “inventou” a nova capital absolutamente sozinho em casa, e ganhou o concurso público para o Plano Piloto da nova capital. Na concepção da parte monumental da cidade, onde determinou a implantação dos prédios e a volumetria construída, ele já sabia contar com a excepcional — e indispensável— presença da arquitetura do Oscar na tradução arquitetônica dos edifícios. É incrível que a Praça dos Três Poderes não seja fruto de uma só cabeça, como à primeira vista se poderia imaginar, mas da soma de duas personalidades tão diferentes, mas unidas pela convicção com que ao longo da vida batalharam pela qualidade da arquitetura brasileira.
A meu ver, Oscar é o único artista plástico popular do século 20, não apenas no sentido da sedução instantânea que sua arquitetura exerce sobre as pessoas comuns, mas pela liberdade com que é assimilada, incorporada e recriada por essas pessoas.
E com o passar do tempo, a coerência das suas convicções políticas, a sua generosidade, seu amor ao Brasil e o seu jeito de ser, tão completamente carioca, o tornaram um personagem querido em todo o país, uma referência “do bem”, independentemente do vulto e do valor da sua obra.
Ao longo de seus 52 anos, o Correio Braziliense e acompanhou de perto a trajetória de Oscar Niemeyer. O jornal tinha uma íntima ligação com o genial arquiteto e dedicou páginas e páginas aos seus feitos
Ligados pela capital
Com uma história intimamente ligada a Brasília, o Correio Braziliense, em 52 anos de existência, dedicou carinho especial ao arquiteto que desempenhou papel fundamental para a capital da República. O gênio foi retratado inúmeras vezes nas páginas do jornal, observador atento da trajetória do homem responsável pelos deslumbrantes monumentos de Brasília. As impressões que ele tinha da cidade, os projetos no país e mundo afora, as alegrias e as tristezas mereceram reportagens de fôlego. Muitas ganharam destaque na capa do Correio. Reproduzimos algumas delas,inclusive a de 100 anos do arquiteto,que ganhou um suplemento especial do jornal. Também republicamos o artigo do arquiteto no qual declara o amor à capital federal.
Brasília, meu amor
Quando Brasília comemora seu 41º aniversário, prefiro pôr dela do seus desacertos e lembrar apenas JK, que a sonhou e construiu, e Israel Pinheiro, sem dúvida o seu principal colaborador. Contar que Brasília começou muitos anos antes, quando, prefeito de Belo Horizonte, JK construiu o conjunto da Pampulha em Minas Gerais.
Lembro aqueles velhos tempos que com ele vivemos. Os mesmos problemas,a mesma correria e o mesmo entusiasmo, repetido sem Brasília vinte anos depois.
Recordo-o, na Pampulha, anos levar de barco, altas horas da noite, para ver os edifícios a se refletirem nas águas da represa. Foram anos de trabalho e boa amizade, que, com o meu colega Marco Paulo Rabello, nunca esquecemos.
E tudo isso explica JK a procurar-me um dia na minha casa das Canoas: ‘‘Niemeyer, vamos construir a nova capital do país’’. E, dias após, eu o acompanhava para ver o local escolhido, e, aos que espantava essa escolha, tão distante, ele se limitava a dizer: ‘‘Vou levar o progresso para o interior do país’’.
Brasília surgia,e aos seus amigos mais íntimos envolvidos no empreendimento preocupava a dificuldade que ele teria para acompanhar o início da obra. Daí a ideia de construir uma casinha de madeira, o Catetinho, onde pudesse passar os fins de semana.
E parece-me vê-lo, a casinha já construída, a conversar sobre aquela aventura, eufórico, como se Brasília estivesse realizada, os palácios construídos, e a vida a substituir o silêncio e a solidão daquele cerrado.
Dava-me a impressão de um príncipe da Renascença, voltado para a beleza que naqueles tempos tanto os possuía. A falar dos palácios que faria, das paredes de mármore e ônix, das esculturas e pinturas que poderiam enriquecê-las, das avenidas e praças que iria construir, esquecido da realidade, daquela terra imensa e vazia difícil de urbanizar. Um entusiasmo, um otimismo, que permitiu evitar que Brasília surgisse como uma capital qualquer.
E a sobras começaram.Toda semana JK aparecia, a todos incentivando com a sua simpatia contagiante. E cedo, muito cedo, Israel já estava a correr os canteiros de serviço, anos convocar para o trabalho. Do meu carro ficava a olhar meus companheiros entrarem nos ônibus da Novacap para logo desaparecerem na poeira da estrada.
E foi num barracão coberto de zinco que desenhamos todos os palácios da nova capital. O Plano Piloto ainda estava em elaboração, e, como capim anos bater nos joelhos, Israel Pinheiro e eu escolhemos o lugar onde deveria ser construído o Alvorada. Para projetar os palácios, inclusive o do Congresso, nos faltava tudo. Nenhum programa, nenhuma
previsão sobre o número de parlamentares, que aumentaria com o tempo. A pressa tudo justificava.
Não vejo razão para nos queixarmos do desconforto existente nem das angústias da solidão: era para trabalhar que ali estávamos, como funcionários, corretos como se impunha, conscientes da importância da obra em que colaborávamos.
Lembro, um dia, JK ame telefonar: ‘‘Niemeyer, sei que você tem problemas de dinheiro. Quero que projete ase de do Banco do Brasil e a do Banco de Desenvolvimento Econômico pela tabela do IAB’’. E eu a responder: ‘‘Não posso,sou funcionário’’. Foi assim nesse clima de trabalho e correção que a construção de Brasília transcorreu, com Israel Pinheiro a estimulá-lo, empreendedor e honesto como sempre foi.
Pouco a pouco, baseada no Plano Piloto de Lucio Costa, Brasília aparecia como um oásis naquela terra vazia e abandonada. As ruas, as praças, os palácios etc. Era a arquitetura a enriquecer o horizonte raso e sem fim do planalto. A cidade que o otimismo de JK permitiu realizar em tão curto prazo: ‘‘Não quero’’, dizia ele, ‘‘uma cidade qualquer, feia e provinciana, mas uma cidade moderna, que possa exprimir o futuro e a grandeza de nosso país’’.
Em 1960, Brasília foi inaugurada, diferente de todas as capitais até hoje construídas — diferente de Washington, por exemplo, que em nada contribuiu para o mundo da arquitetura e do urbanismo. Uma obra realizada em quatro anos apenas, surpreendendo os países mais ricos, mais experientes, e por isso mesmo despidos dessa ousadia que marca as nações mais jovens,abertas para tudo que significa liberdade e invenção.
Quando olho para trás, — excluindo o período negro da ditadura — só lembro apoio e solidariedade de todos os que passaram pelo Alvorada, pelo Senado e pelas Câmaras dos Deputados e de Vereadores.
Hoje mesmo é com prazer que sinto como as obras por nós projetadas vêm sendo cuidadas. O Alvorada, os palácios da Praça dos Três Poderes recuperados, e a conclusão do Eixo Monumental, tão importante para esta cidade, pela primeira vez atendida.
Olho os jornais, as revistas estrangeiras, e constato, satisfeito, que Brasília está sempre presente. Uma cidade pensada e construída por brasileiros — como suor dos nossos irmãos mais pobres, que para ela acorreram confiantes, como se a vida fosse justa para todos.
OSCAR NIEMEYER
Contribuíram para este caderno: Conceição Freitas, Paulo de Tarso Lyra, Diego Abreu, Edson Luiz, Almiro Marcos, Juliana Colares, Julia Chaib, Thaís Paranhos, Amanda Souza, Renato Alves, Nahima Maciel, Maria Elisa Costa.