Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 20 de abril de 1980 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram.
Gota D’Água, de Paulo Pontes e Chico Buarque de Holanda, a “obra mais importante da dramaturgia brasileira nos últimos anos” na afirmação de Bibi Ferreira e endossada por todos que participam da montagem, estréia amanhã inaugurando o Teatro Dulcina de Moraes, da Fundação Brasileira de Teatro. Um velho sonho de Dulcina que muita gente considerou impossível de se concretizar - “mas tudo se vence quando a causa é grande, quando a causa é bela”, diz a atriz - o teatro abre novas perspectivas para o campo não só em Brasília mas no país todo. Com capacidade para 500 pessoas e obras ainda inacabadas, a inauguração já está marcada há muito anos, segundo Bibi, para o dia 21 de abril. E acrescenta que jamais houve dúvidas quanto à criação do Teatro Dulcina de Moraes. “Minha mãe e Dulcina - conta ela 0 são grandes amigas, acredito que uma é a maior amiga que a outra tem e o assunto do teatro sempre esteve presente nas conversas em minha casa. Já era uma coisa resolvida há 25 anos quando nasceu a minha filha”.
Com problemas na garganta e aguardando a chegada do médico, Bibi deixa transparecer algumas vezes certa irritação, mesmo afirmando que responderá a todas as perguntas e mostrando-se interessada em que sejam ouvidos principalmente os atores de Brasília, que participam pela primeira vez como profissionais. Ela afirma que não gosta de falar sobre “o elenco do Rio e o elenco de Brasília”, enfatizando que não há nada para integrar, são todos uma única coisa. E diz que o ensaio - realizado desde sábado - tem sido esplêndido, alegre, ressaltando o trabalho de Dulcina e Fernando Azevedo, o coreógrafo, além dos atores brasilienses que ela considera profissionais e preparados para enfrentar qualquer palco.
E é ao falar sobre Gota D’Água, onde ela interpreta Joana a personagem central, que Bibi realmente se expande. “É uma grande obra de opressores e oprimidos, uma beleza de palavras, de idéias, de reflexão, de beleza brasileira. A poesia de Paulo e a poesia de Chico são uma perfeita construção dramática. A peça tem tudo para inaugurar a Fundação Brasileira de Teatro”. E quando se pergunta sobre a peça dentro da atual conjuntura política do país, Bibi se exalta e reafirma a opinião de que não apareceu nenhuma outra obra melhor que Gota D’Água nos últimos anos. “Enquanto existirem opressores e oprimidos , Gota D’Água é atual. É uma semente lançada na verdade do homem, pelo homem”. Sobre o fato da estréia ter sido dedicada ao presidente Figueiredo, ela afirma que a preocupação deve ser no sentido da inauguração de um teatro, de uma Fundação e isso é o mais importante lembrando que Dulcina precisou vender o teatro do Rio de Janeiro para construir esse em Brasília;
A peça foi escolhida para a inauguração porque Dulcina desejava um texto nacional, embora Bibi diga que o teatro é universal existindo, isso sim, peças boas e peças ruins. Ela se nega a apontar uma peça ruim por respeito aos colegas. Ao falar sobre o conteúdo da peça - uma tragédia toda rimada com muita música, apresentando um balé com movimentos folclóricos como samba e a macumba - a atriz ressalta o trabalho que Dulcina de Moraes e Paulo Pontes tiveram para liberar a peça, as constantes viagens a Brasília. Moisés, o produtor, conta que estrear Gota D’Água era um risco muito grande e Paulo Pontes “pedia por favor” aos jornalistas para que não publicassem nada a respeito da obra e dos ensaios, e foi atendido. Das 128 laudas que compõem a obra, 116 foram cortadas quando houve crivo da Censura o que provocou uma permanência de Paulinho durante quase 12 horas com o censor tentando convencê-lo a deixar passar a peça sem cortes.
A montagem carioca custou 600 mil cruzeiros e a peça se tornou um sucesso. Moisés enfatiza que pela primeira vez a revista Veja publicou a foto de uma atriz na capa: era Bibi Ferreira, a Joana. Para a montagem brasiliense Moisés não tem o número exato dos custos, mas acredita que já esteja por volta dos dois milhões de cruzeiros. Por outro lado ele considera que essa é a melhor montagem já feita especialmente pela garra, a alegria dos atores de Brasília, aos quais ele não poupa elogios. Referindo-se ao fato de que todos eles vinham trabalhando apenas em teatro amador. Moisés lembra que começou em teatro amador e foram os melhores tempos de sua vida artística. “Se os atores de Brasília vêm de teatro amador é um teatro de excelente qualidade. Esse vai ser sem dúvida o melhor espetáculo que nós já fizemos, sem desmerecer as outras montagens”
Como o grupo está todo reunido, os brasilienses são indagados e Diner Monteiro afirma a importância do teatro amador, permanecendo o companheirismo entre o elenco, afirmando que o teatro amador é um trabalho de picadeiro. O elenco enfatiza a atuação com a equipe de Bibi Ferreira, afirmando ser um verdadeiro curso intensivo de teatro. Bibi lembra que não só o teatro amador sobrevive às duras custas, o profissional também luta com as parcas condições financeiras. “Eu mambembei muito por esse país - diz ela - nem meu pai, nem eu recebemos nenhuma subvenção. No teatro existe um quê de muita coragem”. Diante dos comentários dos atores brasilienses de que o entrosamento entre os dois elencos é perfeito, Bibi brinca dizendo que por enquanto eles estão em fase de namoro, estão flertando. E faz referência aos dias em que o espetáculo não apresenta casa cheia porque choveu, tem futebol na televisão e os espectadores não apareceram.
E levantada a questão da estréia da Fábrica de Chocolates, a peça de Márcio Prata, que a companhia de Ruth Escobar traz para Brasília, e que a produtora afirmou ser a primeira peça que fala abertamente sobre opressores e oprimidos. O elenco considera ter sido uma provocação e Moisés lembra que toda a estrutura da companhia de Ruth Escobar foi tirada do Casa Grande, afirmando se espantar com a posição de Ruth num momento em que todas as companhias que realizam trabalho parecidos, deveriam se unir. “Ela devia dizer que as pessoas não devem deixar de ver Gota D’Água. Falando ainda sobre a Sociedade Teatral Casa Grande. Moisés diz que foi a primeira companhia a abrir o debate público no país por volta de 75/76 com um grupo do qual fazia parte entre outros, Paulinho Pontes. O grupo esteve e está interessando com a realidade brasileira, com os problemas que aflige o povo. Numa época que o iê-iê-iê estava em moda foi o Casa Grande quem abriu o Café Concerto, na busca das raízes brasileiras, onde se apresentavam os novos valores da MPB como Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Gutemberg e Guarabira. “O Casa Grande quer contribuir em busca de uma democracia autêntica”, ressalta Moisés.
Adriano Reis, que faz o papel de Jasão, fala sobre a sua emoção em participar de Gota D’Água considerando um marco nos seus 20 anos de carreira. E diz ser a peça mais importante do momento atual em todos os sentidos. Fernando Azevedo,o coreógrafo que acompanha a peça desde a estréia no rio de Janeiro, ressalta a indicação para o Prêmio Mambembe de 1977, em São Paulo, pelo crítico Sabato Magaldi e o lançamento profissional dos 12 bailarinos brasilienses por todo o Brasil. Dulcina chega quase no final da entrevista e bastante entusiasmada fala da alegria de inaugurar e teatro da Fundação Brasileira. “É uma alegria, um sonho que para muitos era impossível. Mas não há impossível quando há amor, altruísmo. Eu acho uma maravilha, sobretudo porque estou acompanhada dessa gente maravilhosa. E o teatro só podia ser inaugurado com Gota D’Água que é a coisa mais importante que surgiu no teatro até hoje”.
A peça que esteve em cartaz durante dois anos no Rio de Janeiro e vai ser apresentada durante um mês em Brasília, segue em excursão por Goiânia, Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Vitória, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Fortaleza e João Pessoa, onde provavelmente será inaugurado o Teatro Paulo Pontes. Além de Bibi Ferreira e Adriano Reais estão no elenco carioca Osvaldo Neiva e Oscar (Creonte). O cenário é de Walter e Bibi explica que para a excursão haverá uma mudança: será utilizado um cenário mais leve, mais adequado para curtas-temporadas e que ela diz que ficará melhor que o atual, dividido em três ambientes.
Do elenco de Brasília os papéis mais destacados estão com o Dimer Monteiro que interpreta o “Boca Pequena”, Margarida Moreira (Alma), Conceição (Corina) e Décio (Cacetão). A direção é de Gianni Ratto e os ingressos já estarão sendo vendidos ao público na terça-feira, dia 22, com o espetáculo para iniciar às 21 horas. Aos domingos haverá uma sessão às 17 horas e a produção está mantendo contatos para que aconteça uma vesperal às quinta-feiras. O teatro Dulcina de Moraes fica no Setor de Diversões Sul Conic Center, ao lado do Cine Atlântida.
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