Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 8 de dezembro de 1987 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram.
O comitê do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) reunido ontem, em Paris, aprovou a inclusão de BRasília como patrimônio cultural da humanidade. A decisão da Unesco atende a pedido formalizado em dezembro de 1985 pelo governador José Aparecido, que mobilizou diplomatas da delegação brasileira da Unesco e da embaixada do Brasil na França para a defesa da proposta. O comitê também inclui na lista dos locais considerados como bens culturais da humanidade a grande Muralha da China.
Seis meses antes de completar 28 anos, Brasília já figura ao lado de cidades como Paris, Veneza, Cairo e Jerusalém, também declarada patrimônio mundial. É uma decisão inédita, já que estas cidades receberam a honraria quando tinham centenas de anos de existência. No Brasil constam da lista de Patrimônio Mundial e Natural da Unesco os centros históricos de Olinda (PE) e Salvador (BA), a cidade de Ouro Preto (MG), o santuário de Bom Jesus feito por o Aleijadinho, em Congonhas (MG), e as Missões Jesuitas no Rio Grande do Sul.
O status de patrimônio da humanidade permitirá às autoridades brasileiras pleitear verbas junto ao Fundo do Patrimônio Mundial da Unesco, visando à preservação da cidade. Porém, o reconhecimento do Comitê do Patrimônio Mundial não tem poder de lei. Ele só é concedido após o compromisso formal dos governos interessados na preservação dos bens.
Decreto assinado a 14 de outubro por Aparecido estabelece a preservação de Brasília, criando condições para a decisão tomada ontem pela Unesco. O decreto 10.829 regulamenta o artigo 38 da chamada Lei San Thiago Dantas, que trata da preservação do projeto original de Brasília.
Ao assinar o decreto, o governador disse que seu interesse é salvar Brasília dos especuladores imobiliários, “que não têm compromisso com a manutenção do projeto original da cidade”. O governador salientou que a decisão da Unesco facilitará a obtenção de recursos junto a organismos internacionais.
Responsabilidade
Apesar de ter sido declarada patrimônio mundial, a preservação de Brasília continua sob a responsabilidade do governo brasileiro, conforme compromisso firmado durante a Conferência Geral da Unesco de 1972. Nessa reunião, foi aprovada a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, que entrou em vigor em 1975.
O objetivo da Convenção é criar um sistema que permita à comunidade internacional participar da salvaguarda dos bens que possuem um valor universal excepcional. Todos os governos que participam da convenção se consideram co-responsáveis por estes bens. Porém, a responsabilidade pela preservação cabe, em primeiro lugar, aos governos e aos países onde estão os bens considerados patrimônio mundial.
Arquitetos apontam o bom e o ruim
A decisão da Unesco, ao lado do decreto 10.829, evitará que o projeto original de Brasília seja desrespeitado. Na opinião do presidente do Sindicato dos arquitetos, Luís Felipe Torelli, a preservação impedirá que a cidade sofra modificações, congelando “coisas boas e ruins”.
Torelli critica o decreto que estabelece a taxa de ocupação máxima de 15 por cento em todas as superquadras das Asas Sul e Norte. Ele considera o índice arbitrário. “Temos quadras que ocupam 12 a 19 por cento de sua área e nem por isso a qualidade de vida nesses locais caiu”. O arquiteto lembrou ainda que o decreto impedirá a realização de obras de reforma na cidade.
Apontou como um dos problemas a serem sanados no futuro, o da travessia de pedestres no Eixão, uma vez que a preservação impedirá a construção de uma passarela sobre a pista. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, seção DF, Aleixo Furtado, salienta que o decreto preservará os traços originais do Plano Piloto, o sistema viário e a correlação entre a área verde e a construída, atos positivos, na opinião de Furtado.
Aparecido acha importante
“Considero essa decisão muito importante para o destino de BRasília, porque vai preservar uma referência fundamental da arquitetura e urbanismo deste século”. A afirmação foi feita ontem pelo governador José Aparecido, ao comentar a aprovação pela Unesco do processo do GDF que pleiteou a inscrição da cidade como patrimônio cultural da humanidade.
Aparecido soube da notícia da aprovação às 13h, em São Paulo, onde foi participar de uma solenidade da Fundação Bradesco. Por telefone, o secretário de Comunicação Social, Osvaldo Peralva - que estava em Paris, em viagem oficial, acompanhando a votação - informou-lhe que o comitê do Patrimônio Mundial da Unesco decidira aceitar a inscrição.
O Correio Braziliense conseguiu ouvir o governador também por telefone. Ele foi localizado no gabinete do proprietário do jornal Folha de S. Paulo, Otávio Frias. Aparecido disse ainda que deverá remeter ao Congresso Nacional no início de 1988 anteprojeto de lei de preservação da concepção urbanística da área delimitada no Decreto n°10.829, publicado no Diário Oficial do DF, de 14 de outubro passado. O documento é baseado em estudo da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).
Ás 18h, Aparecido marcou entrevista coletiva no apartamento 1603 do Hotel Maksoud Plaza, onde está hospedado, para falar sobre o assunto. A noite, disse que iria mencionar a decisão da Unesco, durante palestra que deveria proferir no Museu de Arte Sacra da capital paulista. Ele confirmou seu retorno a Brasília hoje, adiantando que concederá nova coletiva à imprensa local às 17h, no Palácio do Buriti.
O chefe do Gabinete Civil, Guy de Almeida, classificou como “histórica” a decisão da Unesco. “Brasília, com apenas 27 anos, já é considerada de valor excepcional universal, por sua concepção arquitetônica e urbanística”. Ele lembrou também que é a primeira cidade moderna “que tem essa honra”.
Mensagem
Por volta das 19h, através do secretário interino de Comunicação Social, Marco Antônio Campanella, o governador José Aparecido enviou mensagem ao Correio Braziliense dizendo que a decisão do Conselho da Unesco leva a certeza de que a concepção urbanística do Plano Piloto será preservada.
Engenheiro pede mais discussões
O presidente do Sindicato dos Engenheiros de Brasília, Maurício Garcia, recebeu a notícia da inclusão de capital brasileira como Patrimônio Mundial em um questionamento: será que essa cidade está consolidada para ser tombada?”, Garcia criticou o fato de o tombamento não ter sido discutido amplamente com a população e suas entidades representativas.
“Eu preferia que Brasília fosse patrimônio do brasiliense”, comentou o engenheiro. Segundo ele, a entidade que preside não se posiciona contra a preservação da concepção da arquitetura e dos espaços verdes de Brasília, mas se preocupa com o fato de a idade, aos 27 anos anos, ser preservada, e, ao mesmo tempo, as cidades-satélites continuarem muito muito deficientes, com problemas em áreas como saneamento, saúde e transporte.
Na opinião de Garcia, o tombamento “congela a situação que está aí”, com a manutenção de áreas problemáticas como o Setor Comercial sul e a Rodoviária do Plano Piloto, que não atendem mais às necessidades da população. “Hoje está se tombando o Plano Piloto, que é o resultado dos traços de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, de 27 anos atrás”, afirma o sindicalista.
Para ele, o plano de criação da cidade, que deveria ter 500 mil habitantes no ano 2000 e hoje já abriga 1 milhão 700 mil, não corresponde mais aos anseios da população. Garcia também condena o decreto de preservação assinado em 14 de outubro passado pelo governador José Aparecido.
Segundo ele, o decreto foi “muito apressado” e não considerou o parecer de um Grupo de Trabalho, com participação de integrantes da UnB e do Ministério da Educação. Mas o aspecto mais condenável, na opinião de Garcia, foi a falta de consulta à comunidade sobre a preservação, que ele atribui à inexistência de representação política local.
Niemeyer diz que houve merecimento
Os autores dos traços urbanísticos e arquitetônicos de Brasília, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, receberam com alegria a notícia da inclusão de Brasília na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade. Niemeyer afirmou que “a cidade funciona bem e os homens que moram em Brasília se sentem felizes” e, desta forma, considera que “é uma cidade que merece a distinção da Unesco”.
-- É uma coisa que nos agrada, nós que trabalhamos em Brasília. Foi um esforço enorme do presidente Kubitschek, do Plano do Lúcio, daquele período de entusiasmo que permitiu Brasília ser construída em quatro anos -- ressaltou o arquiteto.
Lúcio Costa atribuiu a decisão da Unesco sobretudo “à beleza da obra arquitetônica de Oscar Niemeyer e ao empenho do governador José Aparecido”. Ele acredita que a medida é uma honra à memória do presidente Juscelino Kubitschek e à de Israel Pinheiro.
Maurício Corrêa reabre debate no Congresso
O senador Maurício Corrêa (PDT/DF) declarou ontem que após a reabertura do Congresso Nacional irá reabrir a discussão sobre o decreto de tombamento de Brasília. “Tenho dúvidas quanto a sua validade jurídica”, disse o parlamentar explicando, que pedirá ainda esta semana, a seus assessores para analisar minuciosamente o mecanismo.
O senador lamentou não ter tido tempo suficiente para analisar, em profundidade, o decreto nos últimos dias de funcionamento do Legislativo, este ano. Argumentou que esteve ocupado com a tarefa de relatar as obras de despoluição do Lago Paranoá para a subcomissão da Comissão do DF no Senado, instalada para descobrir irregularidades na licitação, e com as articulações da esquerda contra o Centrão.
Pompeu
Já o senador Pompeu de Souza (PMDB - DF) demonstrou satisfação ao saber que Brasília agora faz parte do Patrimônio Mundial, mas não poupou críticas ao decreto assinado pelo governador José Aparecido que prevê a preservação da cidade. “A inclusão de Brasília no PAtrimônio testemunha perante o mundo a alta qualificação da criação cultural do nosso povo”, comentou o sanador.
Segundo Pompeu, o importante é que a vitória junto à Unesco seja ampliada para além dos estreitos limites do decreto de preservação. Para o senador, “o decreto ignorou todo o enorme e valiosíssimo trabalho de um grupo criado em 1981, por Aluísio Magalhães, à frente da Secretaria Geral do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”.
De acordo com Pompeu, o grupo de trabalho desenvolvia estudos que englobavam todo o significado de Brasília. Inclusive suas raízes.
Como aconteceu toda a votação
Paris - “A grande importância desta decisão é que com ela, Brasília estará protegida contra qualquer agressão e seu projeto original será respeitado”, afirmou o escritor Josué Montello, embaixador da delegação brasileira junto a Unesco. “Além disso, haverá maior conscientização da importância de Brasília no quadro arquitetônico e urbanístico mundial”.
Tão logo terminou a votação do Comitê do Patrimônio Mundial, o embaixador Josué Montello deixou a sala de reunião e dirigiu-se ao seu gabinete a fim de comunicar a decisão ao presidente José Sarney. Sarney, contudo, estava em trânsito para o Palácio da Alvorada. Montello também não conseguiu avisar imediatamente ao governador José Aparecido, que estava em São Paulo em conversa com o prefeito Jânio Quadros.
A decisão de elevar Brasília a categoria de patrimônio mundial não demorou mais de meia hora. Coube ao francês Leon Pressouyr, professor de arqueologia histórica da Universidade de Paris - a Sorbonne - e assessor da Unesco, relatar o processo sobre Brasília. Em sua exposição, Leon afirmou ser favorável à concessão do título a cidade que, a seu ver, “é um conjunto monumental significativo”. Para ele, “Brasília é uma das **** cidades concebidas **** um conjunto, e um conjunto construído no século XX”. Na opinião do professor francês, uma de*** favorável ajudaria a preservar a fisionomia da cidade”.
Como de hábito, Pressouyr apresentou duas opções de voto aos delegados dos 21 países-membros do comitê do Patrimônio Mundial. Uma seria a de considerar que as modificações feitas ao longo dos 27 anos de existência de Brasília haviam desfigurado a capital brasileira e, portanto que ela não mereceria ser incluída na lista. “Esta seria uma apreciação rigorosa e negativa”, afirmou ele.
A segunda opção seria de reconhecer que, efetivamente, a Brasília de hoje não é mais aquela do início, mas que está havendo um esforço por parte do atual governo em preservá-la. “Minha avaliação final é a de que o voto deve ser favorável”, disse.
Restrição
A única restrição foi levantada pelo representante dos Estados Unidos. Segundo ele, ainda não houve tempo suficiente, em termos históricos, para se poder fazer uma avaliação da qualidade arquitetônica de Brasília. “Este tipo de arquitetura ainda é recente, para se saber se ela merece ou não ser considerada um patrimônio da humanidade”, argumentou o norte-americano.
Esse argumento, contudo, foi prontamente rebatido por Pressouyr: “Efetivamente, não temos um distanciamento suficientemente grande para julgar as correntes arquitetônicas do Século XX, como o modernismo, o pós - modernismo etc. Mas no caso de Brasília, não estão em questão apenas a arquitetura ou o urbanismo. Brasília é um novo equilíbrio entre o homem, a função da residência, do local, do espaço. Sua peculiaridade está na tentativa de remodelar o tecido urbano, e o principal é o seu significado simbólico”, disse o francês.
O representante do México pediu a palavra para fazer mais uma defesa da capital: “Brasília tem uma outra importância fundamental. Ela foi construída para integrar o interiro do País e isso não pode ser esquecido”.
Em seguida, o escritor Josué Montello fez um emocionado discurso, lendo depoimento de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa escritos especialmente para esta reunião. Montello finalizou, declarando: “Brasília é um esforço extraordinário do povo brasileiro, que a construiu em apenas quatro anos. É o deserto transformado em metrópole onde não havia senão abandono e solidão, hoje é Brasília”.
Só o Plano vai ser preservado
A preservação definida pelo decreto 10.829 não abrange toda a cidade de Brasília, atualmente com cerca de 584 mil habitantes, conforme estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O decreto restringe-se ao Plano Piloto, estabelecendo a sua manutenção, “assegurada pela preservação das características essenciais de quatro escalas distintas em que se traduz a concepção urbana da cidade: monumental; residencial; gregária e bucólica”.
Segundo o decreto, não pode haver mais construções na Praça dos Três Poderes, onde estão os Palácios do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, além do Congresso Nacional. Os elementos escultórios que estão na Praça também não podem ser mudados, como o Panteão, a Pira e o Monumento ao Fogo Simbólico da Pátria.
O decreto proíbe qualquer construção que não esteja prevista no texto Brasília Revisitada, que confere à capital federal a condição de cidade-parque e inclui ainda para preservação as sedes dos Palácios do Itamarati e da Justiça.
Não poderá haver construções no gramado central situado nos trechos compreendidos entre o Congresso Nacional e a Rodoviária, e entre esta é a Torre de Tv, conforme o decreto. Da mesma forma não haverá construções no trecho entre a Torre de Tv e a Praça do Buriti. Há referências e limitações expressas também para a Esplanada dos Ministérios e os Setores Culturais Sul e Norte.
No setor residencial fica estabelecido que as superquadras 100, 200 e 300 Sul e Norte terão blocos de seis andares, com pilotis, e as 400 terão três pavimentos. A taxa máxima de ocupação das superquadras deve ser de 15 por cento da área verde. Nos Lagos Sul e Norte não serão admitidos edifícios.
Por favor, Unesco, fique atenta
Renato Riella
Secretário de Redação
O governo Ornellas resolveu aplicar um toldo no Teatro Nacional, para proteger da chuva as madames que iam assistir espetáculos de classe especial. E foi colocado o mostrengo, em lona azul, que levou dois anos para cai. Será que alguém teria coragem de implantar um toldo nas pirâmides do Egito ou na Torre Eiffel?
Esperamos que a classificação de Brasília como Patrimônio Cultural da Humanidade
impeça agressões estéticas dessa natureza. Há monumentos, que levam a assinatura de Oscar Niemeyer já incorporados à nossa paisagem de tal forma que não admitem implantes.
Como suportar alterações no projeto da Catedral, ou pinturas exóticas nas colunas do Alvorada, ou mesmo iluminações especiais nas cúpulas do congresso? Esperamos que a Unesco nos ajude a proteger Brasília.