Profeta do óbvio
Enquanto o mundo explode, mergulho na leitura de Até a última página - uma história do Jornal do Brasil (Ed. Cia das Letras), escrita pelo brasiliense Cezar Motta. Durante as décadas de 1960 e 1970, o JB foi o melhor jornal do país. Há vários aspectos a explorar, mas um, em especial, me despertou o interesse: a relação com Nelson Rodrigues, o nosso profeta do óbvio.
O JB era uma unanimidade inteligente. Distinguia-se pelo time de repórteres, o rigor da apuração, a qualidade do texto e as inovações gráficas. As experimentações do Correio da Manhã e do Diário Carioca convergiram para o JB.
O jornal incorporou os chamados copy desks, os redatores passaram a reescrever e padronizar os textos dos repórteres. E os copys do JB constituíam um autêntico serpentário: Ferreira Gullar, Jânio de Freitas, Antonio Callado, Otto Lara Resende, entre outros. Mas Nelson se irritava com a padronização, a assepsia e a sobriedade do jornal: "Se aparecesse um Proust na redação, seria copidescado do mesmo jeito".
Para Nelson, as manchetes do JB eram de uma alienação monstruosa. Enquanto a população se desgrenhava e chorava lágrimas de esguicho diante do assassinato do presidente norte-americano John Kennedy, o famoso jornal mantinha-se no mesmo tom de fleuma elegante.
Nelson via no JB um reduto da chamada esquerda festiva, dos marxistas de botequim e das jovens estudantes de jornalismo, a quem ele eternizou na personagem da "estagiária do calcanhar sujo".
A pouca importância dispensada aos crimes também exasperava Nelson, que estreou como repórter de polícia aos 13 anos de idade. Nelson, mais uma vez, foi profético: "Um dia, por força do seu desenvolvimento, este país terá o seu vampiro. Mas não se preocupem. No dia em que alguém chupar a carótida de alguém, o sangue há de tingir todas as primeiras páginas. Só a do Jornal do Brasil continuará firme no seu preto e branco".
Nelson conta que, certa noite, se dirigia para casa quando foi abordado na porta pela estagiária do JB, que lhe perguntou:"Nelson, qual o maior acontecimento do século 20?" Nelson respondeu à queima-roupa: "A ascensão dos cretinos".
A moça dobrou-se em uma gargalhada, se recuperou e reiterou: "Você é muito engraçado, mas, agora, me diga, com seriedade, qual o grande acontecimento do século 20?"
Nelson não só confirmou, mas acrescentou: "Não estou brincando. Antigamente, os idiotas raspavam na parede com a consciência de sua inépcia. Mas, hoje, com os novos meios de comunicação, se um idiota sobe em uma lata de Querosene Jacaré e grita alguma asneira, será seguido por milhares de outros imbecis. Porque, em todos os tempos, para cada gênio existem milhares de idiotas".