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Um sonho começou o Vale do Amanhecer

O início do Vale do Amanhecer remonta à construção de Brasília, exatamente num princípio de tarde, no local onde existe hoje a Esplanada dos Ministérios

Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 20 de agosto de 1978 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram.

 

O início do Vale do Amanhecer remonta à construção de Brasília, exatamente num princípio de tarde, no local onde existe hoje a Esplanada dos Ministérios. Ali, descansando do almoço, depois de dirigir por toda a manhã um pesado caminhão de pedras, adormeceu Neiva Chaves Zelaya, uma sergipana de Propriá, então com 33 anos de idade, segundo ela própria acredita, a primeira mulher a dirigir caminhões e ônibus profissionalmente. Adormeceu para sonhar, ou como ela prefere, acordar tendo a seu lado a figura de um velho que afirmava ter morrido há muitos anos naquele lugar. 

 

Depois disso outras visões se sucederam, levando a Tia Neiva a procurar explicações em uma igreja católica, “onde não fui sequer recebida”. A outra tentativa foi uma visita a um consultório psiquiatra, “que não conseguiu me dizer nada de convincente”, compelindo-a exaustivos estudos mediúnicos, “através dos quais cheguei a um aprofundamento completo do universo que hoje determina o meu trabalho e de todos aqueles que compartilham do Vale do Amanhecer”.

 

Os primeiro fiéis foram reunidos em Taguatinga e, depois, na Serra do Ouro, nas proximidades de Goiânia, antes que uma comunicação extraterrena indicasse o local onde hoje se localiza o Vale. A sua doutrina é uma reunião pouco ortodoxa de conceitos espiritualistas, onde convivem divindades de todas as linhas consideradas “brancas”, ou sejam, “voltadas para o bem”. O mentor espiritual dessa doutrina é o “Pai Seta Branca”, um espírito que, entre outras encarnações, teria sido um guerreiro inca, autor de muitas façanhas em combate, depois martirizado pelos colonizadores espanhóis. 

 

Os hoje quase 20 mil médiuns, segundo afirma Mario Sassi, o intérprete das visões e comunicações recebidos por Tia Neiva, são divididos em quatro categorias: primeiro grau, mestre jaguar, mestre jaguar sol e mestre jaguar lua.Todos, sem exceções, usam uniformes durante as sessões e no dia-a-dia do Vale, ornados com figuras cabalísticas, contribuindo para acentuar o aspecto místico do local. Alí, todos professam uma profunda devoção à líder espiritual, que afirma não fazer nada além de “interpretar a palavra dos espíritos”, com quem, assegura, dialoga diariamente. 

 

Tudo isso permite até mesmo curas, como garantem alguns médiuns e a própria Tiva Neiva, “mas curas apenas de doenças espirituais, como a epilepsia”. Para alcançar este estágio a líder do Vale do Amanhecer garante ter feito uma intensa preparação, “um curso espiritual, com duração de 5 anos. Período em que foram comuns as saídas do corpo para incursões em uma outra dimensão, “algumas vezes por tempo superior a duas horas”. Nestas ocasiões, se retornar à vida física, a médium chegava a vomitar sangue, num estado de semimorte, tanto que ao final do curso foi necessário um intenso tratamento para a cura de uma tuberculose. 

 

Tudo isso, aliado e “uma profunda da convicção de que só o trabalho pode enaltecer o homem”, leve Tia Neiva e afirmar que “os objetivos do Vale são absolutamente voltados para a elevação espiritual, sem que se admite qualquer intenção material”. talvez por isso ela reagiu energicamente quando o capitão do Exército, Paulo Gustavo Coutinho, afirmou no Rio de Janeiro ter ganho o prêmio maior da Loteria Federal, Cr$ 50 milhões, depois de receber uma comunicação sua. “Sempre gostamos muito do capitão Gustavo, uma pessoa exuberante para quem sempre teremos os braços abertos, mas se ele confundir nossos objetivos, mesmo que pensando em oferecer donativos, é melhor que não apareça por aqui”.

 

Hoje o Vale do Amanhecer é uma área de 22 hectares localizados entre montes próximos a Planaltina, um local agradável e bonito. São cerca de 800 moradores “todos pessoas carentes, que pedem para construir suas casas, o que permitimos com prazer”. Lá é mantido um orfanato com 350 crianças, um pequeno comércio, um templo e vários locais de “concentração mediúnica”. A influência da doutrina do Vale já chega a diversos pontos, como Formosa, Unaí, Alvorada, Manaus, Olinda, em Pernambuco e Costa Rica, no Mato Grosso. São templos criados por seguidores de Tia Neiva que se transferiram para estes locais. 

 

Uma doutrina em expansão, “mas apenas através de idéias”, como garante Mario Sassi, que repele qualquer insinuação a respeito de possíveis ingerências do Vale sobre os seguidores afastados de sua sede principal. “Não queremos que o gigantismo atrapalhe a nossa fé. Se a nossa idéia viaja, influenciando pessoas e criando novos pontos de concentração mediúnica, nada nos cabe fazer, é uma coisa saudável. Mas, diretamente, não temos nada a ver com isso. Nossa doutrina é difícil de ser compreendida por quem não acompanha nessa dia-a-dia, portanto, seria muito difícil se orientar daqui a fé de pessoas separadas por tantos quilômetros”. 

Superintendência do IPHAN no Distrito Federal/Reprodução -
Tadashi Nakagomi/CB/D.A Press -