Cidades

O amor nos tempos de quarentena

Para driblar a solidão do isolamento imposto e necessário na luta contra o coronavírus, o uso de redes sociais e recursos tecnológicos ameniza distâncias. Especialistas pedem cuidado com fake news e alertam que, a longo prazo, o afastamento pode trazer prejuízos


Se o escritor colombiano Gabriel García Marquez estivesse vivo, talvez o clássico O amor nos tempos de cólera ganhasse uma versão atual, inspirada pela quarentena imposta devido ao número de infecções pelo coronavírus no mundo. No romance entre Florentino e Firmina, o casal passa anos sem contato físico, medida que, hoje, é imprescindível na luta contra a Covid-19. Em pleno 2020, no entanto, a carência e a saudade dos entes queridos pode ser aplacada graças a recursos tecnológicos, como redes sociais e videoconferências.

Um aniversário, que seria solitário, ganha cores e sorrisos dos amigos que dão um jeito de se fazer presentes, mesmo a distância. Assim foi a “festa surpresa” da gerente de RH Luciana Propato, 29 anos. No último domingo, ela voltou de uma viagem à Colômbia e, a pedido da empresa em que trabalha, está em isolamento domiciliar. Em quarentena, ela não pode sair de casa e está fazendo teletrabalho.

Mas as amigas não deixariam a data passar em branco e se juntaram para alegrar o dia. A advogada Juliana Cavallari, 29 anos, participou da iniciativa. “A irmã dela ia fazer uma festa e nos chamou, mas tivemos um debate e ninguém achou prudente, pois havia acabado de voltar do exterior e as recomendações não são essas”, explica. “Como é uma data muito importante e significativa para ela, ficamos muito tristes de não estarmos juntos.”

A solução encontrada foi deixar os presentes com o porteiro do prédio de Luciana, mandar entregar uma cesta de café da manhã e fazer uma chamada virtual com todo mundo presente. “Somos amigas há 12 anos e sempre tentamos passar aniversários juntas, pelo menos duas pessoas. Levamos bem a sério”, destaca Juliana. “Deu para transmitir o carinho, ela agradeceu muito e disse que se sentiu abraçada e querida.”

Ao menos 14 pessoas se mobilizaram para cantar parabéns virtualmente. “Eu já estava até conformada de ficar sozinha, mas elas conseguiram trazer aquela energia especial que o dia de aniversário tem”, elogia Luciana. “O vídeo consola o coração. A tecnologia está ao nosso lado tanto para trabalhar quanto para se relacionar. Agora é o momento de se manter distância mesmo e tentar não pirar.”
 
Angústia

A comunicação virtual durante o período de isolamento é uma forma de aliviar angústias, como explica a psicóloga e professora dos cursos de mestrado e doutorado em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB), Luciana da Silva Santos. “Em momentos como o que vivemos hoje, a gente começa a questionar a própria existência, tem medo do contato com o outro e precisa lidar com isso da forma mais serena e madura possível. Precisamos combater o isolamento afetivo”, ressalta.

Mas é preciso ter cuidado também quanto ao lado negativo do uso das redes sociais. “Uma questão a ser observada são as fake news. Você recebe informação com muita rapidez, mas, algo que não é verdade, não será saudável e vai gerar histeria social e preocupação em uma escala que não podemos prever”, alerta a psicóloga.

Ela lembra que o momento de isolamento também tem lados bons e ruins. Famílias que se veem forçadas a compartilhar muitas horas juntas podem se aproximar mais ou encarar atritos interpessoais. “Esse novo vírus traz danos que ainda não podemos calcular, tanto físicos quanto mentais. Vamos ter muitas repercussões na saúde mental, com as relações que ficarão afetadas”, pondera.

Encontro marcado

Com força de vontade, não há isolamento que impeça um encontro saudável entre amigos. Ao menos uma vez por mês, a advogada Biatriz Rachid, 23 anos, e os companheiros marcam um encontro para colocar o papo em dia enquanto tomam vinhos. Ao ver que a quarentena e as recomendações de especialistas pedem a suspensão de aglomerações, a turma encontrou outra saída: videoconferências. Com a taça de vinho em mãos, cada um participou, do conforto da própria casa, de uma conversa que acabou durando mais de duas horas: tempo de sobra para risadas, fofocas e assuntos sérios.

A ideia, segundo Biatriz, foi inspirada por um movimento que já acontece em outros países. “Vimos que o pessoal tem feito isso no Instagram. Na Europa, muitos já adotaram a ideia, e decidimos fazer também”, detalha. “Foi uma forma de manter o contato, sem deixar o coronavírus abalar a gente.”

A jovem já tinha usado o recurso algumas vezes antes da pandemia, mas foi a primeira vez que juntou mais pessoas em uma única conversa: eram quatro amigos falando ao mesmo tempo. “Se pessoalmente a gente já faz bagunça, desse jeito então, era um falando em cima do outro, dois assuntos ao mesmo tempo. Mas o importante é que deu tudo certo”, brinca. “Eu aconselho. É muito melhor do que ficar só nas mensagens.”

Com o avanço das tecnologias, os próprios aplicativos de mensagem hoje oferecem aos usuários recursos como as chamadas de vídeo que podem, inclusive, ser feitas em grupo. No Brasil, a maioria das pessoas prefere o aplicativo WhatsApp, como explica o professor Marcelo Minutti, coordenador do MBA em Inovação e Negócios Digitais do Centro Universitário Iesb. “As pessoas usam muito áudio e esse período de isolamento deve aumentar o uso das videochamadas.”

Ele reforça a praticidade dos recursos, mas alerta para os riscos do isolamento prolongado. “No médio e longo prazo, pode trazer malefícios ligados à solidão. Por sermos seres sociais, precisamos do contato físico”, destaca. “Nos canais digitais, as pessoas devem ser o mais calorosas possíveis, para transmitir carinho e calor humano nessas ferramentas.”

Colaborou Caroline Cintra

"Em momentos como o que vivemos hoje, a gente começa a questionar a própria existência, tem medo do contato com o outro e precisa lidar com isso da forma mais serena e madura possível. Precisamos combater o isolamento afetivo”
Luciana da Silva Santos, psicóloga

Projeto Anjos
  • Parte do grupo de risco, os idosos sofrem, durante o isolamento, também pela carência de companhia. Para tentar suprir a falta de um amigo durante a quarentena, a pesquisadora e publicitária Marília Duque, 42 anos, criou o projeto Anjos, que nada mais é do que uma reunião de pessoas dispostas a bater papo com os idosos nas redes sociais. “Esse é o plano: sensibilizar as pessoas para as necessidades dos idosos que moram sozinhos.” Ela chamou ajudantes em uma rede social e, em minutos, apareceram os primeiros voluntários. Ela recomenda, no entanto, que os “anjos”, isto é, os que auxiliarão os idosos, fiquem apenas na lista de amigos e conhecidos de amigos, para minimizar as chances de golpes.