Uma promessa, a primeira missa no Plano Piloto, o ponto mais alto do Eixo Monumental. Esses são alguns dos fatos que contribuíram para a praça do Cruzeiro e a Igreja Nossa Senhora de Fátima, conhecida como a igrejinha, ganharem um lugar especial no coração dos brasilienses. Na matéria de hoje da série Brasília sexagenária, o Correio fala sobre os dois pontos turísticos que nasceram da fé de Juscelino e de Sarah Kubitschek. Espaços cheios de histórias e memórias dos primeiros anos da capital federal.
Comparado aos outros monumentos da cidade, a praça do Cruzeiro pode parecer algo simples, mas, sem dúvida, é um dos pontos mais importantes da cidade, além de proporcionar o cenário perfeito para registros do pôr do sol. E não à toa: o lugar é o ponto mais alto do Eixo Monumental e ganhou destaque na história da construção. Ali foi realizada a primeira missa oficial no Plano Piloto, em 3 de maio de 1957. Aos 89 anos, o aposentado José Paulo Sarkis lembra com detalhes do momento histórico. “Colocaram quatro postes ao redor do altar e uma lona bem grande, com uns 10 metros de largura e 30 de comprimento para cobrir o sacrário. Tinha muita gente importante naquele dia, inclusive JK. Eu estava com minha esposa e os três filhos”, conta. À época, o Eixo Monumental ainda era um vazio. José recorda que os poucos moradores do local ficaram preocupados com o lugar no qual a celebração seria realizada. “Era tudo mato. E muita gente perguntava onde aconteceria. Outra dúvida era se ia ter comida”, brinca. “Foi um privilégio participar desse momento, apesar de não ser muito religioso.”
Nascido em Uberlândia (MG), o aposentado chegou a Brasília em 4 de março de 1957. O meio de transporte usado foi um caminhão. Ele saiu da cidade mineira por volta das 8h de uma segunda-feira e chegou em Goiânia (GO) meia-noite de um sábado. “A estrada era ruim e era época de chuva, estava um atoleiro. Foi quase uma semana em um trecho de 120 km. De lá, peguei um ônibus para o local da construção de Brasília. Fui o passageiro número 1 da companhia”, lembra. No início, José morou em um acampamento na Cidade Livre. Depois, mudou-se para a W3 Sul. Foi o responsável pela instalação elétrica e hidráulica de vários prédios durante a construção da cidade, entre eles o Hospital Sarah Kubitschek. “Minha profissão me permitiu estar em todos os lugares durante esse período. Era um privilégio para poucos”, declara.
A cruz
Antes da missa, já havia uma cruz no lugar. A estrutura de madeira mostrava o ponto com maior altitude do Sítio Castanho, área demarcada para a construção da nova capital. “Naquela época, geralmente, as igrejas eram construídas no local mais alto. Elas ficavam em cima do morro e a cidade ia nascendo ao redor”, explica Gustavo Chauvet, pesquisador do Arquivo Público do Distrito Federal.
Devido ao desgaste do tempo, a cruz original acabou substituída por uma nova para a celebração da primeira missa. A madeira para a confecção veio de Pirenópolis (GO). Altamir Mendonça, 84, foi o responsável por trazer o material, que era fornecido pelo pai, proprietário de um sítio na cidade goiana. O conteúdo veio em caminhões, uma atividade nada fácil. “Não tinha estrada, não tinha energia, não tinha telefone, não tinha nada. Levei os trabalhadores na carroceria. O córrego estava cheio, não tinha ponte, precisava colocar madeira para passar, então eu gastei uns dois dias para chegar”, recorda. A madeira foi usada tanto na estrutura da missa, como para a construção do Catetinho.
Altamir ficou para a celebração e acabou se instalando em Brasília. “Vim sozinho. Montei uma barraca na beira do córrego Paranoá para dormir”, conta. A paixão por Brasília veio da influência do pai. “Ele acreditava que Brasília seria a redenção do interior do Brasil e eu discutia com ele que não. Aqui era sertão, não tinha nada, mas ele acreditava tanto! Isso passou para mim e realmente era verdade. Juscelino abriu Brasília para todo o Brasil”, ressalta. Para se sustentar, Altamir tinha um armazém na Cidade Livre e ficou na capital até a renúncia do presidente Jânio Quadros, quando decidiu voltar para Pirenópolis. Atualmente, mora no sítio do pai. Hoje, além de produtor, é advogado.
Curiosidades
Igrejinha
- O primeiro pároco da igreja foi o Frei Demétrio. Ele ficava em um barraco de madeira, na quadra, e atendia na igrejinha. Ele ficou conhecido como o candango de Fátima.
- A arquitetura da igreja faz referência a um chapéu de freiras.
- O templo foi construído em 100 dias.
- A Igrejinha é mais um dos monumentos embelezados pelos azulejos de Athos Bulcão. Por dentro, diferente de outras igrejas, o templo conta com obras de arte moderna. As pinturas foram feitas originalmente pelo artista italiano Alfredo Volpi. Ele desenhou a Virgem Maria segurando o menino Jesus nos braços. As figuras não tinham rosto e repousavam sob um fundo azul. Porém, a obra de arte foi destruída na década de 1960. O painel foi pintado novamente em 2009, pelo artista Francisco Galeno, que manteve as características em homenagem ao artista.
Fonte: Paróquia Nossa Senhora de Fátima
Cruzeiro
- A cruz usada na primeira missa foi substituída. A original está exposta na Catedral Metropolitana de Brasília.
- A primeira missa realizada na Praça do Cruzeiro aconteceu na mesma data do primeiro ato litúrgico no Brasil, 457 anos depois.
- Uma marcação, em forma piramidal pintada de laranja, a 38 metros da cruz, sinaliza o vértice n°8, ponto usado como referência para a construção da cidade, com base no projeto de Lúcio Costa.
- Um réplica da estrutura de madeira e lona construída para abrigar os convidados da missa, projetada por Oscar Niemeyer, foi instalada na entrada do Taguaparque, em 2008.
Fonte: Agência Brasília
Um templo diferente
Um templo diferente
A alguns quilômetros do cruzeiro, um outro monumento chama a atenção dos turistas e dos moradores da cidade: a igreja Nossa Senhora de Fátima. Obra de Oscar Niemeyer, o templo não passa despercebido entre os prédios da 308 e 307 Sul. De família católica e fervorosa, a aposentada Maria Therezinha Zimmerer, 89, frequenta o local há 58 anos. Passou duas décadas à frente da leitura bíblica nas missas das quartas-feiras e dos domingos. Era uma tradição. Quando chegou em Brasília, em 24 de dezembro de 1961, conheceu o Frei Demétrio, o primeiro a conduzir a igrejinha. Ela lembra do sacerdote com carinho. “As pessoas contam que um dia, ao entregar a hóstia para um peão, durante a construção de Brasília, o pão caiu. E ali ficou. No outro dia, segundo os operários, a hóstia estava do mesmo jeito. As formigas ficavam em volta, mas não encostaram nela”, conta. Até hoje, dona Thê, como é conhecida, não confirmou se a história é verdadeira, mas guarda o relato como uma das memórias do sacerdote.
A igrejinha foi inaugurada em 28 de junho de 1958, na 308 Sul. O templo erguido a pedido da mulher de Juscelino, Sarah Kubitschek, seria o pagamento de uma promessa. A obra foi o primeiro templo de alvenaria construído no Plano Piloto e está próxima da primeira quadra residencial concluída, a 108 Sul, e da quadra modelo, a 308. O comércio em frente, era, naquela época, o principal ponto de vendas na região central. O local acabou conhecido como rua da igrejinha. “A igrejinha foi construída dentro do conceito de unidade de vizinhança, aplicado por Lúcio Costa. Ele incluía uma igreja, um clube da vizinhança, uma escola classe, uma escola parque e um comércio”, explica Gustavo Chauvet.
Após a inauguração, o templo entrou para a rotina do fim de semana da população. Natanry Osório, 81, lembra que a programação dos domingos era a mesma: ir à missa da tarde e depois lanchar na Pizzaria Dom Bosco, localizada na mesma quadra do templo. “Sempre nessa ordem. À época, ainda não tinha muitas coisas, eram poucas construções, mas a igrejinha fazia o coração de todo mundo bater mais forte. Vou lá até hoje”, conta. Para ela, a celebração mais bonita foi a da abertura, com a presença de Sarah Kubistchek. “Foi muita emoção naquele dia. Nunca me esqueço. Minha relação com a igreja é forte, criei meus filhos lá e todos adoram aquele lugar”, afirma.
"Ela aumenta a nossa fé”
Muitos os moradores da cidade têm afeição pela igreja. A aposentada Edite Leal, 79, faz parte desse grupo. Ela chegou em Brasília em 1962 e frequenta o templo desde então. Na primeira vez que pisou no local, ainda era solteira. Veio para o batizado de um sobrinho. “Eu morava no Núcleo Bandeirante e vinha com meu pai, de ônibus, de vez em quando. Depois, eu me casei, continuei no Núcleo Bandeirante e vim algumas vezes com o meu marido. Quando mudamos para o Lago Sul, vinha esporadicamente (à igreja), até vir de vez para a Asa Sul”, afirma. A aposentada se mudou com o marido para o Plano Piloto, pois queriam morar em apartamento. Ela ressalta que o templo teve um peso a mais na escolha da quadra. “Muita gente frequenta a igrejinha porque veio morar aqui, mas a gente mora aqui por causa da igreja”, ressalta. Para ela, o lugar é especial. “É diferente de todos os templos. Não pela a arquitetura, mas pelo ambiente. Sinto que ela aumenta a nossa fé”, diz.
Edite vai à missa três vezes por semana e hoje ajuda nas celebrações como ministra da Eucaristia. Apaixonada por Brasília e pelo templo, ela ainda produziu um livrinho contando a história do lugar. “Foi um mês pesquisando. Tive que correr contra o tempo. Conversei com antigos moradores da quadra, com párocos, inclusive as matérias do Correio Braziliense foram algumas das minhas fontes”, comenta. Emocionada, Edite tem a igreja como parte da própria vida. “Eu me sinto muito satisfeita com o templo que eu frequento. Fico muito feliz em participar dos eventos da igrejinha, em especial das missas”, garante.