Correio Braziliense
postado em 12/03/2020 04:09
A peça O rinoceronte, de Ionesco, escrita em 1960, remontada sob a direção de Hugo Rodas, não poderia ser mais que atual. Para quem não conhece, ela narra a situação de progressivo pesadelo de uma cidade assolada pela metamorfose dos humanos em rinocerontes. A peça discute o efeito manada, a tendência ao fenômeno da maria vai com as outras, a indiferença, a alienação, a cultura do ódio, a massificação, a manipulação e os falsos mitos.
O absurdo passa a reger a vida das pessoas. Esse surto de rinocerontite é uma doença mais perigosa do que o coronavírus, pois provoca a transmutação dos seres humanos em paquidermes selvagens. Com a internet, a rinocerontite tornou-se ainda mais contagiosa.
E o mais trágico é que alguns tomam gosto em ser maria vai com as outras. A fala final do personagem Bérenger é de uma carga poética dramática e explosiva: “: “Eu me defenderei contra todo mundo! Sou o último homem, hei de sê-lo, até o fim! Não me rendo!”
A fala final do protagonista Bérenger é solitária, mas tem uma carga poética explosiva de heroísmo trágico. Só ele resiste: “Eu me defenderei contra todo mundo! Sou o último homem, hei de sê-lo, até o fim! Não me rendo!”
Conhecia o texto de Ionesco e assisti a várias montagens da peça. Mas, dessa vez, o impacto foi maior ao assistir a montagem dirigida por Hugo Rodas com a Agrupação Teatral Amacaca. E isso talvez pela proximidade com a rinocerontite que assola o país. Por isso, resolvi reler O teatro do absurdo, de Martin Esslin (Ed. Zahar). Lá, encontrei um precioso depoimento de Ionesco sobre O rinoceronte.
Ele diz que, ao escrever O rinoceronte, voltou às suas obsessões pessoais: “Lembrei-me de que no curso de minha vida tenho ficado muito impressionado pelo que podemos chamar de correntes de opinião, sua rápida evolução, seu poder de contágio, que é o mesmo de uma epidemia de verdade. Repentinamente as pessoas se deixam invadir por uma nova religião, uma nova doutrina, um novo fanatismo... Em tais momentos, testemunhamos uma verdadeira mutação mental”.
Ionesco observa que, quando as pessoas não compartilham mais as nossas opiniões, quando não conseguimos mais nos fazer compreender por elas, temos a impressão de que estamos vendo monstros — rinocerontes, por exemplo: “Ficam com essa mesma mistura de candura e ferocidade, e se tornam capazes de nos matar com a consciência tranquila. E a história demonstrou que no último quarto de século as pessoas assim transformadas não só parecem rinocerontes, mas realmente transformam-se em rinocerontes”. Só a arte pode nos salvar da rinocerontite.
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