Cidades

Mataram Mário Eugênio

Uma facada e três tiros de escopeta, pelas costas, calaram o repórter do CORREIO e da RÁDIO PLANALTO

Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 12 de novembro de 1984 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram

 

O repórter Mario Eugênio Rafael de Oliveira foi assassinado pouco antes da meia-noite de ontem com uma facada e três tiros de escopeta calibre 1, na cabeça, em frente ao prédio da Rádio Planalto, por matadores profissionais que teriam fugido num Fusca branco. De 31 anos de idade, Mario Eugênio vinha denunciando, ultimamente, arbitrariedades policiais e crimes do “Esquadrão da Morte”, tendo recebido várias ameaças de morte. 

 

Mário Eugênio, o famoso Gogó das Sete da Rádio Planalto, era Editor de Polícia do CORREIO BRAZILIENSE e notabilizou-se por apurar casos difíceis. Ele trabalhou ontem à tarde na reportagem do CORREIO e à noite participou da edição da página policial do jornal, de onde saiu às 11 horas. Mário Eugênio seguiu então para a Rádio, onde gravou o seu programa, que foi ao ar na manhã de hoje. Pouco antes da meia-noite. Mário desceu do quinto andar da rádio ao térreo onde se encontrava o seu monza branco BB-7777 e foi fulminado por trás pelo desconhecido, recebendo inicialmente uma facada profunda na nuca e em seguida, très tiros de grosso calibre na cabeça. 

 

A única testemunha do acontecimento é o operador de rádio, Francisco Resente, que gravou o programa com o próprio Mário Eugênio. Chiquinho, como é conhecido, saiu do prédio momentos antes do acontecimento e ainda escutou os tiros (segundo conta, foram três). De longa distância, já próximo ao prédio da TV Brasília, o operador pôde ver um homem com chapéu escuro, vestindo um casaco também escuro, correndo com “uma arma comprida” na mão. Chiquinho contou que perdeu o assassino de vista por alguns segundos e, pouco depois, avistou um Fusca branco afastando-se rapidamente do Setor de Rádio e Televisão em direção ao Venâncio 2.000. 

 

O corpo de Mário Eugênio ficou estendido no chão, ao lado de seu carro, e pouco depois cerca de dez carros de polícia já estavam no local, alertados pela Rádio Planalto. Os primeiros trabalhos da polícia, feitos na madrugada de hoje, indicavam que que o crime foi praticado “por profissional” ou “profissionais”. 

 

Dezenas de policiais amigos de Mário Eugênio compareceram ao local e comentaram que o assassino deve ter estudado detalhadamente os hábitos do repórter. O presidente da Associação dos Agentes de Polícia, o conhecido policial Kojak, era um dos maiores amigos do repórter e contou, em frente à Rádio, que constantemente vinha prevenindo-o para se proteger. A preocupação maior dos amigos de Mário era que ele andava desarmado desde junho passado, quando o secretário de Segurança Pública, coronel Lauro Rieth, mandou apreender a sua arma de calibre 38, alegando que o revólver era de calibre privativo das Forças Armadas. Apesar de Mário Eugênio estar protegido por porte de arma concedido pela própria Polícia Federal, seu revólver nunca foi devolvido. Constantes protelações burocráticas acabaram encaminhando a arma para o âmbito da 11ª Região Militar. Nas últimas semanas, Mário Eugênio vinha adotando providências judiciais para reaver seu revólver, inutilmente. 

 

 

 

A apreensão da arma de Mário Eugênio, há cerca de cinco meses, ocorreu como represália a constantes matérias em que Mário Eugênio denunciou arbitrariedades policiais. Durante semanas consecutivas, forças policiais cercaram sua casa, apreenderam seu carro e culminaram com o confisco da arma que lhe dava segurança. Este último fato causou grande constrangimento a todos os seus colegas da redação, porque agentes vieram buscar o revólver dentro do jornal, numa operação que envolveu delicada negociação com a direção da empresa.

 

Desde então, revoltado com a pressão policial, Mário Eugênio andava desprotegido. Mesmo assim, colocou seu senso profissional acima da sua sobrevivência e, nas duas últimas semanas, constantemente, denunciou as atividades de um Esquadrão da Morte que matou, no Distrito Federal, sete marginais, alguns deles menores de idade. No dia 5 passado numa segunda-feira, Mário Eugênio fez uma matéria em que relacionou diversos casos insolúveis, atribuídos ao Esquadrão, e envolveu áreas policiais em mortes que nunca foram devidamente apuradas. 

 

Hoje de madrugada, policiais insatisfeitos com a própria polícia acompanhavam com aguda sensibilidade cada detalhe das investigações e comentavam sempre que Mário Eugênio foi vítima de falta de proteção a que o obrigaram a viver nos últimos meses. 

 

O delegado Francisco Feitosa, representando a Secretaria de Segurança, comandou pessoalmente as primeiras investigações. Cauteloso, procurou apresentar poucas hipóteses para o caso, mas admitiu que o carro do bandido ficou escondido num estacionamento ao lado da Rádio. Ele disse ainda que, à primeira vista, Mário Eugênio foi morto com uma arma de grosso calibre, que pode ser uma Magnun 45 ou uma escopeta. 

 

O repórter recebeu três tiros na cabeça, segundo se acredita, à queima-roupa. O primeiro golpe, porém, foi uma facada à traição, que prostou-o e permitiu que o assassino disparasse os três tiros com tranquilidade. Do modo como aconteceu o crime, provavelmente há mais de um matador envolvido, embora a única testemunha tenha visto apenas um homem correndo. O corpo foi retirado do local às 2h40, e sua família, em Minas Gerais, foi avisada pela direção do CORREIO. 

 

 

 

Mário Eugênio era repórter do CORREIO BRAZILIENSE desde 1976. Formou-se na Universidade de Brasília, em Comunicação, e trabalhou em outros jornais, como o Diário de Brasília, Correio do Planalto, Estado de S. Paulo (sucursal), além da Rádio Planalto, onde tornou-se personagem da cidade, comandando o “Gogó das Sete”. 

 

Ele morreu. Mas nós não

Uma mão poderosa no mundo do crime ou das suas adjacências armou as mãos sujas dos assassinos de Mário Eugênio. Suas reportagens sempre contrariaram poderosos interesses, inclusive no submundo da polícia. Ninguém na redação do CORREIO BRAZILIENSE desconhecia que ele era um homem marcado pelos marginais e por policiais corruptos. Seus amigos e familiares sempre pediram moderação na luta pela apuração da verdade. Ele ouvia as ponderações, mas seguia em frente. Suas reportagens resultaram em inquéritos e punições para muita gente dentro da própria polícia, até mesmo certos secretários de Segurança Pública que juravam, no mínimo, flagrá-lo em algum delito, por pequeno que fosse. Os tribunais de Brasília estão repletos de processos de pessoas, policiais e delegados que se julgavam atingidos pelos seus textos nos últimos anos. A justiça, porém, nunca conseguiu puni-lo, apesar dos poderosos interesses que sempre rodearam esses processos. 

 

De Mário Eugênio fica essa grata lembrança do companheiro alegre que nunca se recusou a mexer com fogo. A grande quantidade de motoristas de táxi e pessoas simples que acorreram imediatamente ao local do crime deixa bem claro seu prestígio junto à população mais pobre de Brasília que, movida pelo seu programa de rádio e reportagem no CORREIO, acorria a sua mesa de trabalho para reclamar dos poderosos ou de seus esbirros momentaneamente armados de um revólver. 

 

O CORREIO BRAZILIENSE se compromete, a partir de hoje, a colocar nas ruas muitos mários eugênios para que seu trabalho prossiga e seus assassinos recebam merecida punição, estejam eles a serviço de quem for. 

 

As mãos assassinas devem estar gozando neste momento a sensação da impunidade, mas isso certamente vai durar pouco, pois os tiros atingiram fundo toda uma categoria profissional e a população que recorria a Mário Eugênio, imaginando talvez que ele, por dispor de espaço na imprensa e de amigos, estivesse a salvo dos assassinos. 

 

Calaram um companheiro da forma mais brutal. Os assassinos e seus mandantes vão pagar um alto preço. 

 

O enterro do repórter Mário Eugênio será amanhã às 10 horas, no Cemitério do Campo da Esperança. 

 

Capa do Correio Braziliense de 12 de novembro de 1984 sobre a morte do jornalista Mário Eugênio
Arquivo/CB/D.A Press - Capa do Correio Braziliense de 12 de novembro de 1984 sobre a morte do jornalista Mário Eugênio
Givaldo Barbosa/CB/D.A Press -