Cidades

Crônica da Cidade

Dura realidade

A chuva bate na janela e de repente tudo vira aconchego. Cobertor quentinho, filme na tevê, uma caneca de chocolate com generosa dose de suspiro no topo, o dengo da pessoa amada.

 

De repente não tem mais coronavírus. Todos se contaminam da beleza dos pingos batendo nas folhas. Não tem mais febre amarela, dengue nem zika. É o bem-te-vi que espalha frutos entre as árvores e os descampados.

 

De repente, acabamos com o analfabetismo. Os moradores viraram cidadãos. Leem, escrevem, se comunicam com articulação impecável. Destroem preconceitos com a força de uma betoneira ao quebrar o concreto. Só há obras para erguer escolas.

De repente não tem mais terra plana e outros delírios alucinantes. A sabedoria dá a volta ao mundo nos poucos segundos de uma troca de mensagens pela web. Ninguém mais se ofende pelas redes sociais. Muitos discordam, mas se respeitam. Ninguém duvida dos direitos humanos.

 

De repente, acabou a corrupção. Política se torna sinônimo de futuro. O passado fica lá atrás, na memória dos erros que jamais se repetirão. Nem tortura, nem violência. Direito conquistado na raça é verdade absoluta, incontestável. A Justiça passa a enxergar.

 

De repente, não se mata. Nem pela cor, nem pelo sexo. A força das orações transcende crenças. A fé, finalmente, move montanhas. E aí é possível, enfim, viver a vivacidade das cores da favela. Sem medo, sem dúvida. A única arma empunhada é o livro, no tablet ou nas prateleiras das bibliotecas.

 

Acabou a chuva. E acordo do sono como quem desperta para um pesadelo. Os medos, verdadeiros ou plantados, são reais. A vida anda tomando rumos desesperadores. A alegria dos sentimentos que transbordam de dentro do peito é abafada pelos sentidos malucos do dia a dia de quem sobrevive ao Brasil de hoje. Não dá mais para torcer pelo sonho. É preciso lutar para que ele aconteça.