Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 3 de julho de 2002 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram.
De tudo fica um pouco, só que ontem ficou tudo de tudo. Porque nessa terça-feira de céu faiscante, o Brasil brasileiro foi um Brasil brasiliense feito de uma multidão de 500 mil pessoas possuídas por uma agitação febril, pelo gosto saboroso da vitória, pelo orgulho de receber em casa os heróis do penta. Quase não houve tempo para organizar a festa — pouco mais de 24 horas de preparativos que de nada valeram, porque todo o protocolo foi quebrado, em nome de uma alegria que havia muito a gente não sentia.
Nem a gente nem eles, os heróis do verde-e-amarelo que tomaram conta da casa como se fosse sua. E era, e era. Trocaram o histórico carro do Corpo de Bombeiros por um trio elétrico (e muita cerveja), cantaram, batucaram, acenaram, mandaram beijos e autógrafos, sorriram — como sorriram. Teve quem deu cambalhota, quem se ajoelhou de mãos para o céu e quem sambou. Às vezes, meio sem jeito, como o conservador e disciplinado Luiz Felipe Scolari. ‘‘Uma surpresa maravilhosa que a gente viu em Brasília’’, disse o técnico, depois de tudo.
E que tudo. Gente que saiu do paupérrimo Jardim Céu Azul, a 50 quilômetros de Brasília. Gente do Plano Piloto que só teve de atravessar o Eixinho para encontrar seus heróis. Ricos, remediados, pobres, miseráveis e pedintes; que veio de ônibus, de carro, a pé, de bicicleta, patins, skate, patinete, cadeira de rodas, muleta. Cães, bebês de colo, garotinhos, adolescentes, gente adulta, gente mais velha, gente mais velha ainda. Salvos raríssimas exceções, todos estavam acometidos da febre verde-e-amarela numa camiseta que fosse.
Nas mais de quatro horas de espera, sob o céu sem nuvem, a umidade relativamente baixa (35%) e a temperatura amena (22 graus), a multidão parecia concentrada num único assunto: futebol, seleção e as vitórias de 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002, numa espécie de felicidade retroativa para insuflar mais ainda a que estava por vir. E ela veio do céu, num boeing 767 escoltado por cinco caças (Mirage e F5) da Força Aérea Brasileira. E reverenciado pelo É Penta! desenhado pela Esquadrilha da Fumaça no bem mais alto do céu.
Quentura no coração
Quando a felicidade chegou na terra, subiu num trio elétrico e num caminhão, para percorrer 15 km da Base Aérea ao Palácio do Planalto. Deixou mágoas no caminho: os bombeiros, que tão orgulhosamente prepararam o histórico AEM-4, usado nos desfiles dos tri e dos tetracampeões, viram seu sonho correr para os carros de uma marca de cerveja e ameaçaram barricada para impedir que os heróis deixassem o aeroporto.
Para o meio milhão de pessoas que esperavam pelos heróis, pouco importava se o carro deles era vermelho ou se tinha tartaruga. Mesmo que os pentacampeões tenham passado no Eixão Sul num relâmpago, em menos de 30 segundos de prazer para os olhos, de quentura no coração, de uma louca vontade de chorar, de pular, de gritar. Insatisfeitos e incontroláveis, os mais jovens saíam correndo atrás do trio elétrico de Ivete Sangalo e sua Festa incansável.
Lá na frente, depois da virada para a Esplanada dos Ministérios, mais multidão febril de uma Brasília que decidiu mostrar, de uma vez por todas, que não tem sangue de barata, como o resto do Brasil parece acreditar. Os heróis do penta disso já tinham certeza quando subiram a rampa do Palácio do Planalto, cantaram o Hino Nacional, foram condecorados com a Ordem Nacional do Mérito, pularam e sambaram com a ajuda dos tambores do Olodum ao lado das colunas e do púlpito do Palácio do Planalto.
As três mil pessoas que puderam entrar no palácio — autoridades, funcionários, filhos, parentes próximos e distantes, apadrinhados e privilegiados — queriam um autógrafo, uma foto, uma prova de que lá estiveram. Na confusão, 15 crianças machucadas ou com mal-estar foram atendidas pelo serviço médico do Planalto.
Os brasileiros do lado de dentro do palácio mal sabiam que os brasileiros do lado de fora celebravam seus heróis como eles mais gostam — como se estivessem num imensurável campo de futebol. Era uma multidão de torcedores em êxtase, como nunca dantes vista em Brasília. Mais que isso, só em 2006.
Quando nos tornamos reis
Espaços vazios de Brasília idealizados por Lúcio Costa desaparecem durante passagem apoteótica dos pentacampeões pela capital. População não mede esforços para demonstrar carinho aos atletas, saudados como deuses da bola.
Depois de seis horas em pé, a criança nos ombros vira torcicolo. O sol e a aridez esturricam o que outrora foi pele. A cerveja fermenta uma dorzinha de cabeça intermitente. Mas não há o que temer. Alto lá, nossos heróis estão a caminho. No horizonte desponta um carro, um caminhão cheio de gente em cima. Uma descarga fulminante de adrenalina. Gritinhos, tchauzinhos, choro. Mas, espere um pouco, não são os penta-campeões, mas jornalistas e fotógrafos. Vaia aguda. Minutos depois, agora sim, um caminhão vermelho. Tem uma escada. É um carro de bombeiros! Só podem ser eles. Felipão?... Não tão cedo. Quem chega é o Coronel Rajão, deputado distrital, com um camiseta onde se lê ‘‘bombeiro amigo’’. Desta vez, não são apenas vaias, mas xingamentos e gestos obscenos. ‘‘Sai daí.’’
Mas, também, o que se esperava? Ver um herói não deve e não pode ser tarefa tão fácil. Quanto mais 24 — o Scolari também conta.Sem sofrimento, qual é a graça? Bem, momentos de suplício após e, enfim, vem a apoteose. Não há mais papagaios de pirata no caminho entre os gladiadores do Oriente e o povo que há muito ansiava por justiça, desde a derrota para os gauleses em 1998. A taça é exibida por Cafu, o camisa número dois do Jardim Irene, do alto do trio elétrico. Viva o povo brasileiro.
A cena corre Brasília e se repete. No caminho do aeroporto. No Eixão. Na Esplanada. Na praça do Três Poderes. Não há mais espaços vazios. A capital só pode ter sido concebida por Lúcio Costa para a comemoração do Penta. Um arquibancada humana gigante toma conta dos gramados empoeirados, dos viadutos e plataformas. Quinhentas mil pessoas. O concreto prestes a rachar.
Rajão por Ivete
Oh, dúvida cruel. Em que carruagem desfilarão os conquistadores de Yokohama? De um lado, um reformadíssimo caminhão de bombeiros. A pintura estalando de nova. A escada tinindo. Faixa com dizeres patrióticos. Como cicerones, o supracitado Rajão e bombeiros mirins — criancinhas fardadas. Tem também a repórter global Delis Ortiz. A postos. Do outro lado, ah o outro lado... A musa Ivete Sangalo moldada por uma calça jeans colada, cerveja a vontade, e loiras saradas devidamente contratadas para o evento. Para equilibrar com Rajão, a tartaruga da Brahma dá um toque bizarro ao trem da alegria. O avante baiano Edílson, chamado o‘‘capetinha’’, é de uma rapidez fenomenal e profere o veredito: ‘‘Gente, é aqui’’. Claro, ele se refere ao bólido que levará sua conterrânea. Bombeiros ficam amuados, a tradição é defenestrada sem titubeio, mas, há de se convir, a concorrência é desleal.
O capeta toma a frente da festa, que a essa altura, por volta das 11h, já está rolando. Ronaldinho, o Gaúcho, com uma bandana preta na cabeça, encorpa a percussão. Edílson é o mestre de cerimônias e chama os mais tímidos para que celebrem clássicos portentosos de nossa cultura neotropicalista tais como Segura o Tchan!, ‘‘Curtir o Terrasamba não é nada mal’’ , além daquele jinglezinho safado da Globo em ritmo de axé. Belletti samba. Roque Junior requebra. O Fenômeno arrisca um passo. Anderson Polga se empolga. E por aí vai.
A caravana da vitória logo adentra as espaçosas avenidas da capital. A poeira assassina de julho não reina mais absoluta. Agora divide metros cúbicos com o frenético ritmo que vem do gueto, do Pelourinho. São dois os carros da Brahma laureados de pentacampeões. No primeiro, está a animada turma de Edílson. No outro, um pouco à frente, vem Cafu, em posição de destaque, com sua taça de estimação, e Rogério Ceni fazendo as vezes porta-bandeira. Quando irrompem pelo Eixão, a ficha cai. Meio borocoxôs, talvez por causa do jet lag, os atletas se espantam. São reis. Dá para reparar os olhos vidrados de Lúcio. Gritos da multidão.
A chegada
A pista de base aérea de Brasília se dividiu em duas partes para receber os heróis do Penta. De um lado, jornalistas, que começaram a chegar às seis da manhã.Do outro, o grupinho do ‘‘pistolão’’, com o privilégio de ver os atletas antes dos mortais comuns (repórteres não contam). Por volta das 9h45, o boeing da seleção apontou no céu, escoltado por cinco caças Mirage, um deles nas cores verde, amarelo e azul. Os radialistas foram os primeiros a anunciar: ‘‘É maravilhosa a imagem de nossos campeões chegando.A torcida, toda de verde e amarelo, não se contém de alegria’’, narrou um deles, com o exagero típico dessas transmissões. Pouco depois, Cafu, trazendo taça, e Felipão surgem dos céus na cabine do capitão. Deleite geral ao som de Aquarela do Brasil,tocada pela bandinha militar.
Momento sublime
Grande encontro é esperado na Praça dos Três Poderes. Fernando Henrique Cardoso, o Sociólogo, e Ronaldo Nazário, o Fenômeno. Mas um outro personagem eclipsou, de alguma forma, este choque de Titãs. Não, ainda não é o Vampeta. FHC se depara com ela, a Taça. Que vem das mãos de Cafu e adere, tal qual superbonder, nos dedos do presidente. O capitão do Penta a deixa repousar por instantes nas mãos do Susserano. Mas logo, enciumado, lança um olhar, como quem pede de volta.
Depois que os pentacampeões sobem a rampa, chega a hora em que todas fagulhas de comemoração se unem, sinérgicas. O Hino Nacional entoado em homenagem especial aos heróis redime qualquer sensação de fracasso do povo. Gente grande chora. Duas menininhas, postadas logo abaixo da rampa, também choram. Intervenção divina no coletivo.
Passado o momento ufanista-comovente, os craques do Penta, pelo menos alguns deles, demonstram o que são em essência: gente brasileira, daquela com tendência incontida à molecagem. O protocolo — prática não muito apreciada por essas bandas — vai definitivamente às favas. A cerimônia é a entrega de medalhas em honra ao mérito. São Marcos ajoelha e reza na rampa. Ronaldinho Gaúcho vai de bandana, mas alguém a arranca antes, fazendo esvoaçar suas melenas enquanto recebe o prêmio. E o Vampeta? O que foi aquilo? Bem, não há como descrever melhor que a imagem, imortalizada pelas tevês, da cambalhota desengonçada. A rampa do poder, escalada por presidentes, imperadores e primeiro-ministros já viveu momentos mais austeros. Mas é Vampeta, com sua solenidade às avessas, quem fará história.
Chutes no protocolo
Irreverência e tumulto marcam encontro dos jogadores da Seleção Brasileira com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Teve até cambalhota de Vampeta na rampa do Palácio do Planalto após condecoração
O vetusto Palácio do Planalto curvou-se ao ritmo do samba, da axé music, da contagiante alegria do povo com a presença dos astros do penta. Com direito até a cambalhotas na rampa do mais que empolgado Vampeta, sob os olhares incrédulos das comportadas e protocolares figuras palacianas.
Em clima de informalidade total, ao som da banda Olodum, o presidente entregou
aos jogadores a Ordem Nacional do Mérito. Os jogadores protagonizaram momentos de descontração durante o que deveria ser uma solenidade, mas Vampeta abusou da irreverência. Vestido com a camisa de seu clube, o volante corintiano deu uma série de cambalhotas rampa abaixo. Depois, explicou-se: ‘‘Foi uma homenagem a um amigo de todo grupo, o Louco. Ele não apareceu, mas foi importante nessa conquista’’, garantiu o baiano. ‘‘Cada vez que o Brasil ganhava na Copa, ele dava duas cambaiotas”.
Segundo Vampeta, Louco mora na Suíça. ‘‘Conversei com ele e prometi homenageá-lo no Brasil, só que exagerei e dei mais de duas cambaiotas. Tentei apenas passar um momento de alegria, garantiu Vampeta.
Até o sisudo técnico Luiz Felipe Scolari sambou no Parlatório do Palácio, depois de dividir um chimarrão com FHC. Sobre o fim de seu contrato com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o técnico admitiu a possibilidade de seguir à frente da Seleção. ‘‘Não vou tomar nenhuma decisão sem pesar os prós e os contras no calor da emoção, mas devo tudo ao presidente Ricardo Teixeira. O que ele me pedir eu tenho a obrigação de fazer’’, disse o treinador, dando a entender, assim, que deve mesmo renovar o contrato, que terminou no domingo, dia da final da Copa. ‘‘Por enquanto, estou desempregado’’, disfarçou, mas a recepção dos torcedores de Brasília mexeu com o treinador. ‘‘Quero fazer muito mais pelo Brasil para ver essa alegria do povo. Foi uma surpresa maravilhosa o que vimos hoje.’’
O meia-atacante Rivaldo não esqueceu de sua terra natal. ‘‘Quero agradecer ao povo de Paulista (Pernambuco). A gente trabalhou muito, e as pessoas reconheceram’’, disse o craque. Ele afirmou que não houve problema com o presidente Fernando Henrique — Rivaldo não gostou quando o presidente, antes da copa, defendeu a convocação de Romário. ‘‘Só teve a entrega da medalha’’, disse o jogador. ‘‘Não tive e nunca vou ter problemas com o presidente.’’
O goleiro Marcos, que chegou a se ajoelhar no fim da rampa ao receber a medalha, atribuiu o gesto à emoção: ‘‘Não é sempre que se tem a oportunidade de estar aqui. Eu sempre pedia a Deus para me ajudar, mas mesmo que o Brasil não tivesse vencido eu agradeceria a Ele’’.
Tumulto
A entrada dos jogadores no Palácio do Planalto foi marcada pela histeria. De nada
adiantaram os dois cordões de isolamento feitos pelos seguranças da Presidência. Depois da entrega das medalhas, os jogadores tiveram grandes dificuldades para chegar ao Parlatório. Quando Denílson, Ronaldinho Gaúcho e, por fim, o técnico Luiz Felipe Scolari tentaram chegar, foram cercados. Denílson ficou ilhado entre seguranças ao ser atacado por fãs mais empolgados. Ronaldinho Gaúcho quase perdeu a bandana que cobria a cabeleira. Felipão tomou tapas carinhosos na cabeça.
O maior temor dos seguranças eram as vidraças do segundo andar. Se fossem quebradas, pessoas poderiam cair no térreo. Sem noção do perigo, crianças corriam atrás de autógrafos. Pais se preocupavam. A todo momento, alguém tomava um pisão ou passava mal com o empurra-empurra.
‘‘Cadê meu filho?’’, gritava uma mãe aflita, no meio dos torcedores. ‘‘Procura ele aí pra mim. Tá com uma camisa da Seleção e uma bandeira enrolada no ombro. Tem oito anos’’, pedia ela, tensa.
O serviço médico do Planalto atendeu pelo menos 15 crianças com pisões e mal-estar. Algumas delas estavam fracas pela falta de alimentação, conseqüência do atraso na chegada dos jogadores.
No parlatório, só festa. Ao som do Olodum, os pentacampeões foram à forra. Vampeta, Kaká, Lúcio e Ronaldinho Gaúcho fizeram coreografias e jogaram camisetas para a torcida. Até Felipão se empolgou e mostrou seus dotes de dançarino de axé. Na hora da volta, entretanto, o clima de felicidade transformou-se em apreensão. Era grande o temor com o ímpeto dos torcedores, que já tinham dominado todo o segundo andar do Planalto.
Os seguranças tentaram, de qualquer maneira, abrir caminho para os jogadores trafegarem. A todo momento, chegavam reforços. Os craques tiveram de se espremer entre o público e as vidraças do prédio para chegar à rampa, mas eram facilmente alcançados. Muitos sofreram tapinhas na cabeça, arranhões, puxões.
Kléberson, tímido, era o mais assustado. Correu como se estivesse fugindo de um linchamento. Rivaldo passou rapidamente, sem se importar com o assédio. Ronaldinho Gaúcho escapou correndo, divertindo-se com a histeria. Ronaldo saiu andando com rapidez, mas baixou a gola da camisa e mostrou três marcas de unha no pescoço. O mais empolgado com os torcedores era Roque Júnior. Ele chegou a parar algumas vezes para dar autógrafos, mas logo se arrependeu. A confusão era demais.
Roberto Carlos, que carregava a taça, só conseguiu passar porque os seguranças foram truculentos com os torcedores. Quem teve saída de popstar foi o brasiliense Kaká. Ele estava protegido por quase dez seguranças. Meio assustado, sorria e acenava para as torcedoras ensandecidas, que choravam e berravam seu nome.