Cidades

Quatro feminicídios no mês

Neste ano, janeiro registrou um assassinato por questão de gênero a mais no DF em relação ao mesmo período de 2019. Especialistas e pesquisadores alertam para sinais revelados por potenciais agressores de mulheres


Larissa, Gabrielly, Rute e Fátima. Cada um desses nomes representa histórias de medo, insegurança e violência doméstica. Em comum, mulheres que se tornaram vítimas de homens covardes no primeiro mês do ano. São quatro casos, contra três de janeiro de 2019. Além disso, os assassinatos por questão de gênero no Distrito Federal, contabilizados desde março de 2015, com a sanção da Lei nº 13.104, mostram aumento ao longo dos anos. Desde a vigência da legislação, a maior taxa, segundo a Secretaria de Segurança Pública, foi registrada em 2019, com 33 feminicídios.


A situação reforça os desafios do Estado e da sociedade para combater esse tipo de crime. A violência por parte de um companheiro começa com uma ameaça, um grito, um aperto no braço, um ato de superioridade. A psiquiatra forense pela Associação Médica Brasileira, Eusaline Soares Siqueira, explica que, em casos de violência doméstica, o homem apresenta características de dominação, possessividade e ciúmes extremo. “Em geral, vemos que as agressões vão se intensificando, em frequência e gravidade, à medida que a relação se mantém”, aponta. Para a psiquiatra, no início do namoro, é mais difícil identificar características de autoritarismo. “Há uma máscara social no começo do relacionamento, pois a pessoa tenta mostrar apenas os lados positivos”, detalha.


Ao longo do tempo, porém, é necessário identificar um possível perfil no agressor. “Alguns fatores devem ser observados, como notar a maneira com que o parceiro se comporta em relação às decisões. É uma pessoa que compartilha ou controla tudo? A mulher também pode observar se ele sente raiva com facilidade, principalmente em questões que poderiam ser resolvidas em uma simples conversa, e se consegue respeitar os limites. Ele fica insistindo ou respeita o espaço da parceira?”, questiona Eusaline.


Com o objetivo de trabalhar as consequências da ideologia patriarcal e da reprodução da violência contra a mulher, o Grupo Reflexivo para Homens, do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT), recebe agressores para atendimento psicossocial e pedagógico. O coordenador do projeto, João Wesley Domingues, explica a necessidade de abordar cinco aspectos nos encontros. “São eles: noções gerais da Lei Maria da Penha; o tema de habilidades relacionais, que vão ensinar o homem a resolver conflitos sem o uso da violência; o sistema de crenças da masculinidade; mitos e verdades a respeito da violência e processos de autorresponsabilização, para que o homem se perceba violento; e mude de atitude”, cita.

“Quando os agressores chegam, a grande maioria acha que não cometeu nenhum ato violento, pela própria falta de compreensão do assunto. Ao fim do processo, é nítida a compreensão e a mudança de discurso”, opina. “O grupo tem como base a visão positiva do ser humano. Assim como o agressor aprendeu a ser violento, ele pode assimilar a pacificidade. Nós acreditamos que qualquer pessoa pode ser restaurada e serem bons exemplos para que os filhos não repitam o padrão”, ressalta João Wesley.

Dor em família
“É muito complexo entender que houve um assassinato dentro da minha família”, diz João Silva, 39 anos, irmão de Rute Paulina, morta pelo companheiro à facada, em Samambaia. “No dia do assassinato, não houve uma briga acalorada. Foi um golpe inesperado, frio e cruel na jugular. Antes da facada, minha irmã tinha amamentado o Gabriel, de um 1 ano e 7 meses, e depois pedido para o Samuel, de 8, segurá-lo”, conta. “O meu sobrinho mais velho disse que a facada foi em seguida, na frente do fogão”, revela.

O relacionamento dos dois começou após o parceiro, de 40 anos, largar as drogas e entrar para a igreja. “Rute namorou, noivou e casou, cumprindo todo o ritual religioso”, conta o irmão. Segundo ele, o comportamento do acusado, preso em flagrante, era imprevisível. Em dezembro do ano passado, o agressor foi ao escritório onde a irmã trabalhava e arrombou a porta. “O patrão dela chamou a polícia, mas Rute impediu o boletim de ocorrência”, lamenta o irmão. “Acho que ela acreditava na melhora dele e também era contra o divórcio”, explica.

Uma mulher que sofreu violência doméstica carrega série de problemas por toda a vida. Esse é caso de uma vítima de 57 anos, que teve a vida paralisada após agressões sofridas há 7 anos. “Até hoje, eu tenho medo e não saio de casa sozinha com receio de ele me matar”, relata a cabeleireira. Atualmente, a mulher não consegue mais trabalhar na profissão devido às agressões sofridas pelo ex-namorado, em 2013. “Meu rosto está imobilizado, não aguento ficar em pé muito tempo, porque fico tonta. Além disso, não consigo mais enxergar pelo olho esquerdo. Também estou passando dificuldades financeiras”, lamenta.

O agressor, de 38 anos, parecia uma boa pessoa no começo do namoro, porém, após um ano de relacionamento, ela sofreu a primeira pancada. “Ele me machucou no rosto, mas menti para o meu filho e disse que tinha caído. Passamos um tempo brigados e, depois, nos reconciliamos”, relembra. Após perceber que o companheiro não mudaria, ela resolveu acabar com a relação, mas não conseguiu. “Quando falei que queria separar, ele ameaçou me matar”, conta. Em um churrasco com filhos e amigos, Jefferson esperou todos saírem para feri-la. “Ele me chutou até cair. Depois, veio com martelo e chave de fenda, dizendo que abriria a minha cabeça”, lembra. A mulher teve o nariz quebrado e, após ele perfurar um dos olhos da vítima, ela desmaiou. “Quando acordei, ele não estava mais perto, deveria ter acreditado que eu tivesse morrido. Fiz uma oração pedindo para sobreviver, porque não queria morrer daquele jeito, naquele momento, sozinha e com tanta dor”, recorda.

Ajudada por um vizinho, a vítima foi levada em estado grave ao Hospital Regional da Asa Norte (Hran), onde ficou mais de um mês internada. Lá, fez a reconstrução do nariz e do rosto com os ossos da costela. “Depois disso, ele passou um tempo foragido e ainda me ameaçou de morte na rua. Uma vez, passou por mim de bicicleta e ameaçou me matar novamente”, relatou. Mesmo com a medida protetiva e a ocorrência em mãos, ela teme que ele volte. “Ele tinha sumido, estava em outra cidade e parece que foi preso, porque bateu em outra mulher. Tenho medo de ele me matar, porque ele jurou que faria isso.”

Segundo a psicóloga Lilian Martins, a violência doméstica gera um adoecimento mental e físico. “As vítimas desenvolvem depressão, ansiedade e esgotamento mental”, detalha. A situação começa a partir de um sentimento de dependência. “No início, a pessoa acha que está sendo protegida e, quando percebe, está refém do relacionamento”, diz. O foco principal para o tratamento, portanto, está no fortalecimento pessoal. “A base de tudo está no empoderamento, quando a mulher passa a buscar e a sustentar sonhos e verdades próprias, em de os anularem”, aponta.



CPI faz visita a família de vítima

Os cinco parlamentares que compõem a CPI do Feminicídio, na Câmara Legislativa, visitaram os familiares de uma das vítimas do crime em 2019. De acordo com os relatos colhidos, é a primeira vez que o Estado bate na porta deles, o que reatesta a importância da CPI do Feminicídio. Falta de assistência psicológica, social e jurídica integram o diagnóstico preliminar da Comissão. Dessa forma, a CPI encaminhará série de solicitações para órgãos públicos, tais como Secretaria de Saúde, Secretaria de Assistência Social, Secretaria da Mulher e Defensoria Pública do Distrito Federal. Outras famílias de vítimas e mulheres sobreviventes de tentativas de feminicídio (75 só em 2019) serão visitadas nas próximas semanas. Os depoimentos ajudarão a CPI a traçar caminhos para a atuação eficaz das políticas públicas. Integram a CPI do Feminicídio os deputados Claudio Abrantes (PDT), Arlete Sampaio (PT), Fábio Felix (PSol), Júlia Lucy (Novo) e Eduardo Pedrosa (PTC).



Onde pedir ajuda

Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência — Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República
» 180 (disque-denúncia)

Centro de Atendimento à Mulher (Ceam)
» De segunda a sexta-feira, das 8h às 18h
» 102 Sul (Estação do Metrô), Ceilândia, Planaltina
Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam)
» Entrequadra 204/205 Sul
» 3207-6172

Disque 100 — Ministério dos Direitos Humanos

Programa de Prevenção à Violência Doméstica (Provid) da Polícia Militar
» 3910-1349 e 3910-1350


Artigo

por Soraia Mendes

“Ainda vivemos com medo”

Em 2019, somente na capital federal brasileira, dados catalogados pelo Fórum de Mulheres do Distrito Federal e Entorno mostram o assustador número de 33 feminicídios. Mulheres assassinadas não só por parceiros ou ex-parceiros, mas também em atos de violência misógina proporcionada pela inexistência de políticas públicas de transporte, de iluminação e/ou de segurança que deveriam garantir a todas nós (muito especialmente mulheres negras, pobres e periféricas) o elementar direito à cidade.

No Brasil, incorporamos à nossa legislação o feminicídio como o ato de matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino em contextos de violência doméstica e familiar e/ou de menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Mas ainda vivemos com medo. Com medo de ações violentas de companheiros ou ex-companheiros. E também com medo de que a negligência estatal em garantir transporte, iluminação e segurança nos faça a próxima vítima da letalidade misógina.

As mortes de Letícia e Genir, duas moradoras de uma região administrativa do Distrito Federal, mostram bem isso. Letícia e Genir foram estupradas e mortas por um homem que oferecia transporte clandestino e que não teria encontrado melhor oportunidade para a prática do crime se o Estado tivesse garantido a essas trabalhadoras o direito (básico!) de ter ao seu dispor linhas de ônibus que conectem a periferia ao coração do poder em Brasília.

Em meu ponto de vista, o fenômeno do crescimento do número de mortes de mulheres no Brasil demonstra estar em curso em nosso país um verdadeiro feminicídio de Estado mediante uma política, ora subterrânea, ora plenamente visível, de extermínio. Tal como escreveu Marcela Lagarde, uma das criadoras do conceito de feminicidio, é  “uma fratura do Estado de Direito que favorece a impunidade”.

Em Wars against women: sexual violence, sexual politics and militarized state, publicado há quase 20 anos, Liz Kelly fala da violencia sexual como estrategia deliberada de guerra e de repressao política de Estado contra as mulheres. Para Kelly, a expressão “guerra às mulheres” não é uma metáfora, mas uma realidade histórica que todas vivenciamos. No Brasil, está em curso um novo tipo de guerra contra as mulheres e está na hora de falarmos de feminicídio de Estado.

* Soraia Mendes é advogada criminalista