A chegada da velhice tem contornos diferentes a partir de quem a encara. Muitos podem viver a fase com plenitude, mas outros não têm a mesma sorte e tornam-se vítimas da falta de empatia e da violência. Em janeiro, uma mulher de 69 anos morreu após viver em estado vegetativo durante 10 anos. A Polícia Civil apura se a morte decorreu de abandono, causas naturais, maus-tratos ou feminicídio. A filha dela, responsável pelos cuidados com a idosa, foi presa por omissão de socorro, exposição ao perigo e apropriação de bens, mas pagou fiança e foi liberada.
Enquanto há famílias que têm meios de lidar com o envelhecimento de parentes, outras encontram alternativa em casas de acolhimento. Ainda assim, a perda da autonomia pega de surpresa quem viveu uma juventude independente. Há dois anos, Maria Helena Vieira Moraes, 70, optou por viver em um lar para pessoas com mais de 60 anos. A escolha partiu dela própria, após ver o esforço que as três filhas empenhavam para tomar conta da mãe. “Elas trabalham, têm família, precisavam cuidar da vida delas”, relata a aposentada.
Maria Helena contava com o apoio de cuidadoras em casa. No entanto, com o aumento do preço desses serviços, dispensou as auxiliares. A necessidade de pensar outra solução surgiu depois de ela ter dois derrames e precisar de cadeira de rodas para se locomover. “Minha vida mudou, porque, até para beber água, eu precisava pedir a alguém. Não é algo legal.” Quando pediu para conhecer os abrigos, as filhas se posicionaram contrariamente, mas, depois de muita insistência da mãe, aceitaram.
A vida no Lar de Velhinhos superou expectativas. Além de receber suporte, praticar atividades e ir a consultas, a convivência com pessoas da mesma idade a deixou mais tranquila. “A idade chega para todos. Isso faz parte da vida. E minhas filhas estão sempre aqui quando podem. Não fui abandonada, nunca fui maltratada. Aqui é um bom lugar para mim”, comenta Maria Helena.
O aposentado José Wilson Celestino, 75, sempre teve uma vida ativa, negócio próprio e vários imóveis. Quem ouve a história tem a certeza de um final feliz. Porém, o destino lhe reservou uma velhice diferente da que ele imaginava. Hoje, a vida é em um lar para idosos, em Sobradinho, onde vive há três anos. Mesmo distante da família, ele diz que não se sente abandonado, pois as filhas o visitam duas vezes por mês. “Nossa relação é muito boa. Não tenho do que reclamar”, conta. “Quando cheguei a Brasília, com esposa e filhas, me afundei nas bebidas. Minha ignorância fez com que eu me separasse dela por um desentendimento banal. De repente, me vi sem alternativa e busquei por um abrigo.”
Violência
Lidar com questões relacionadas ao envelhecimento torna-se mais desafiador à medida que o tempo passa. No centenário de Brasília, daqui a 40 anos, o número de idosos alcançará 33% da população, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente, essa taxa representa cerca de 10% do total de brasilienses. Ao mesmo tempo, esse índice vai superar o número de pessoas com até 19 anos (atualmente em 30%, com previsão de cair para 17,4%).
As cidades de Ceilândia, Plano Piloto e Taguatinga abrigam a maior parte dos idosos, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad) 2018. Nos lagos Sul e Norte, a proporção de idosos ultrapassou outros grupos etários de moradores dos dois bairros. As taxas correspondem a 23,8% e 21,2%, respectivamente.
Não por acaso, as três cidades com o maior número de idosos também concentram as maiores taxas de maus-tratos contra essa população. Nos primeiros lugares, ficam Ceilândia (1.619 casos), Taguatinga (1.046) e Plano Piloto (878). Entre 2008 e 2018, violência psicológica, negligência e violência financeira se sobressaíram entre as práticas criminosas mais comuns contra eles (leia Ocorrências). A maioria acontece em ambiente familiar, segundo o Mapa da violência contra a pessoa idosa no Distrito Federal de 2019.
Denúncias
No DF, a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial Religiosa ou por Orientação Sexual ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin) investiga ocorrências de violência contra pessoas com mais de 60 anos. Para a delegada adjunta da unidade, Cyntia Cristina Carvalho, o trabalho com esse público envolve desafios. “É muito difícil um idoso denunciar um filho, um parente. Muitos deles começam a registrar, mas, depois, voltam (atrás) e falam que estavam nervosos, (denunciaram) no calor do momento”, afirma.
Cyntia conta que, diariamente, chegam novos casos de violência {a unidade. Todos passam por uma avaliação antes das providências. “Vamos até a casa e vemos se existem, de fato, os maus-tratos. Não podemos chegar prendendo o possível agressor, porque, às vezes, é a única pessoa que o idoso tem. É um trabalho inicial de diálogo e reflexão. Se prender um filho, o idoso vai para onde? Fica com quem?”, pondera a delegada.
A estudante Iná da Silva Lopes, 37, cuidou do pai durante os últimos anos de vida dele. A dedicação a fez abrir mão do emprego e de outras atividades da rotina. “Ele precisava de acompanhamento, das refeições na hora certa. Ele não foi um pai presente, mas, no fim da vida dele, nos aproximamos muito”, conta. Em 2018, a família recebeu uma denúncia de maus-tratos. Um vizinho acreditava que o idoso sofria violência dentro de casa, na Cidade Ocidental (GO).
“Foi uma surpresa. Meu pai era muito nervoso e ficava bravo às vezes, e as pessoas achavam que ele era maltratado”, relata Iná. À época, o Ministério Público de Goiás visitou a família e concluiu o contrário. “Os assistentes sociais viram que ele era bem cuidado, que a casa estava sempre limpa e que o alimento era o certo. Foi um equívoco do vizinho. Tanto que, depois, ele veio nos pedir desculpas”, recorda-se. “A gente acaba sendo julgado quando cuida de um idoso. Mas só sabe da realidade quem vive nela.”
» Ocorrências
Casos de violência por tipo entre 2008 e 2018
Psicológica 4.955
Negligência 4.928
Financeira 2.867
Física 2.526
Abandono 464
Autonegligência 156
Sexual 81
Não identificado 88
Agressores
Filhos 57,49%
Outros parentes 12,23%
Netos 8,12%
Não identificado 7,03%
Companheiro(a)/ex 5,16%
Outros 5,05%
Vizinho(a) 3,71%
Cuidador(a) 1,22%