Cidades

Crônica da Cidade

Uma dicaQuando cheguei ao segundo grau, escolhi estudar em uma escola particular na Asa Sul. As aulas começavam às 7h15, e minha mãe não demorou dois segundos para concluir que eu jamais chegaria no horário se tivesse que ir de ônibus — naquele tempo, eram necessários dois coletivos para ir da minha casa, no Lago Norte, até o colégio. Ela, porém, já tinha criado até a idade adulta outros dois filhos e estava cansada de acordar de madrugada para deixar menino na escola. Determinou: “Você vai de transporte escolar”.

Ainda estávamos nos loucos anos 1980, e minha mãe descolou um motorista que, aproveitando a pouca oferta e a alta demanda, não recusava nenhum cliente. Assim, o ônibus branco e de aparência nada confiável viajava com mais adolescentes do que cadeiras. Sim, uns seis ou sete tinham que ir em pé. E eu era um deles, já que minha mãe tinha sido uma das últimas a contratar o serviço.

Com o tempo, aquele negócio de ficar em pé enquanto todo mundo ia sentado, terminando o dever a caminho da escola ou tirando uma invejável sonequinha sacolejante, começou a me revoltar. Um dia, expus um plano para uma amiga, ao lado de quem sempre seguia viagem — ela sentada, eu em pé. “Tava pensando em, amanhã, chegar e pegar o lugar daquele pequenininho ali... Ele sempre entra no ônibus depois de mim. Se eu fizer uma cara de mal-humorado, ele pode ficar com medo de falar alguma coisa.”

Minha amiga ainda pensava em um jeito delicado de me dizer o que achava do meu plano quando ouvi uma voz sobre meu ombro direito: “Boto fé, gordinho. Se tu fizer isso, também vou escolher um otário pra roubar o lugar dele”. Olhei para trás e confirmei que se tratava de uma das figuras mais asquerosas que tinha tido o desprazer de conhecer na escola.

O sujeito era um valentão clássico, que compensava a provável falta de amor em sua vida, com ameaças e atos terroristas contra garotos menores que ele. E todos os garotos eram menores que ele. Tirando seu grupinho de outras figuras asquerosas, todos eram potenciais alvos de seu sadismo. E, agora, pela primeira vez, ele se dirigia a mim de maneira positiva, apesar de ter feito questão de ressaltar minhas características físicas ao fazer isso. Sorri meio sem jeito, dei uma enrolada, coloquei um “vamos ver” na conversa e dei graças a Deus quando chegamos à escola.

Minha amiga seguiu viagem, porque ela estudava em outro colégio, mas retomou o assunto assim que nos encontramos novamente, horas depois, na volta para casa. “Beto, fiquei pensando em te falar isso a manhã toda. Essa sua ideia de escolher o menor menino para roubar o lugar dele é muito feia”, sussurrou, talvez para me preservar, talvez para evitar que o valentão a ouvisse. “É, né? Tava em dúvida”, respondi, já meio envergonhado. “Dúvida?!”, sussurrou exasperada minha amiga. “É covarde, Beto! Olha só quem gostou da ideia”, completou, levantando as sobrancelhas para não apontar com o dedo.

E naquele dia recebi mais uma das várias lições que essa querida amiga me daria ao longo da vida: prestar atenção no tipo de pessoa que gosta do que dizemos ou de como somos é uma excelente forma de sabermos se estamos dizendo coisas boas ou sendo legais. Por exemplo: se alguém diz que adora você e, pouco depois, elogia Hitler, é sinal de que você vai mal, mas vai mal demais. Fica a dica.