O projeto era de uma unidade de saúde revolucionária para o país. A utopia, por outro lado, é questionada por brasilienses que enfrentam longas filas de espera, falta de medicações e uma estrutura, muitas vezes, precária. Mas é entre as paredes erguidas em 1960 que vidas são resgatadas e novas surgem. Especialistas afirmam que, mesmo com as dificuldades, trata-se de um local de referência. Uma das primeiras unidades hospitalares da capital, o Hospital de Base é tema da quinta matéria da série Brasília sexagenária.
O hospital carrega muita história. Nos passos apressados entre os corredores do Base, o cardiologista Osório Luís Rangel de Almeida, 72 anos, alimenta diariamente a paixão pela medicina. São 43 anos dedicados ao atendimento dos pacientes. “Eu costumo brincar que, há mais de 40 anos, eu gasto a sola do meu sapato aqui. Entrei na UTI (unidade de terapia intensiva) e depois fui para a cardiologia”, conta. O médico mora em Brasília desde 1962 e foi formando da 4ª turma de medicina da Universidade de Brasília (UnB).
Nos anos de carreira, Osório viu de tudo: momentos de alegria, de desespero, mas, principalmente, de agradecimento, o que recarrega as energias dele diariamente. Um dos funcionários mais antigos, chega ao hospital cedo e acumula inúmeras histórias de rotinas pesadas, com o propósito de salvar vidas. “Quantas vezes eu fiquei a noite inteira acordado, ao lado de um doente. Na UTI, por exemplo, ficava com o paciente, sem piscar o olho. O sol amanhecendo, e você vendo as coisas terem resultado satisfatório, com o paciente voltando às suas condições de vida.”
Para ele, não há dinheiro que pague o olhar de uma pessoa agradecida pelo atendimento. “Eu costumo brincar com os meus pacientes que quero vê-los pelas costas: dando tchau, dizendo que tudo ocorreu bem. Essa é a maior satisfação da gente. É ver o paciente saindo, sorrindo e agradecendo a instituição pelo trabalho feito”, ressalta o médico. As dificuldades também são lembradas. Cardiologista, Osório recorda-se do período de cinco anos em que as cirurgias de coração foram suspensas — o serviço foi retomado em 2019 — e de quantas vezes teve o atendimento prejudicado pela falta de equipamento.
“O hospital já sofreu muito. Eu vi e senti isso. No passado, eu cheguei a dar notícia para o responsável de um setor dizendo que compramos equipamentos e, por burocracias, o processo foi cancelado”, lamenta. Osório tem a esperança de que o novo modelo de gestão hospitalar retome de vez a rapidez e eficácia no atendimento. Para ele, o hospital público deve ser procurado por todos, não apenas por quem não tem alternativa. “Já tivemos autoridades de peso sendo atendidas aqui”, destaca.
Outro jaleco conhecido nos corredores do local é o que tem o nome do doutor Pompílio Ximenes, 72. O também cardiologista tem uma história de 40 anos de serviços prestados a pacientes naquela unidade de saúde. “Orgulho-me de trabalhar no Hospital de Base desde 1980, porque é um lugar com profissionais de ponta. Até presidentes da República passaram por aqui, como Tancredo Neves. Isso mostra a grandeza”, conta.
Ele chegou a Brasília em 1978 e diz que foi especial prestar serviços em um lugar de referência no país, com médicos de alto nível. Para Pompílio, a importância desse prédio vai além das linhas que definem o Distrito Federal. “Percebemos isso no dia a dia, quando vemos pessoas de todas as regiões. Pelo meu consultório, passaram moradores do Nordeste, do Norte, do Sul, do Sudeste… porque sabem que temos qualidade”, comenta. Tudo isso faz com que o cardiologista tenha carinho pelo Hospital de Base, tanto que ele já imagina como serão os anos longe. “Estou próximo da aposentadoria e sei que vou ficar com saudades, mas a medicina é uma profissão que nos acompanha por toda a vida.”
Percalços
Quem analisa o plano urbanístico de Brasília e a história da capital reconhece a relevância do Base. Geraldo Nogueira Batista, professor aposentado de arquitetura e urbanismo da UnB, explica que essa unidade de saúde faz parte de um projeto inovador do DF. “Diversos setores de atuação da administração da cidade foram concebidos como exemplares. O Hospital de Base, projetado por Oscar Niemeyer, estava inserido no contexto de iniciativas revolucionárias na área da saúde pública. Esse pioneirismo contemplava a existência de toda uma rede complementar de outras unidades hospitalares ou de saúde, de menor porte”, diz.Porém, o pesquisador afirma que o período da ditadura militar interferiu em um planejamento de sucesso. “Depois do golpe de 1964 e, ao longo do período da ditadura, o projeto, com outras iniciativas renovadoras, como o plano de educação de Anísio Teixeira, foram paulatinamente abandonados. Na ausência dessa rede complementar, o Hospital de Base foi sobrecarregado nas funções. A situação levou a alterações do programa e a desfigurações da arquitetura inicial”, detalha. Os anos se passaram, e os problemas foram se diversificando. Um deles é a carência de recursos de saúde em regiões administrativas do DF e em cidades vizinhas.
“O Hospital de Base catalisa uma região que ultrapassa os limites do Distrito Federal e do Entorno, atendendo a demandas de vários estados, porque oferece qualidade e variedade de serviços de saúde inexistentes em boa parte dos municípios e estados brasileiros”, considera Geraldo. Mesmo com essas barreiras, o arquiteto acredita que o prédio chega próximo ao seu sexagenário com a tradição como marca. “Apesar de todos os percalços, o Hospital de Base continua a ser visto como e desempenha o papel de um grande hospital público da capital. Os quase 60 anos de existência implicam, sem sombra de dúvida, no acúmulo de experiências e na formação de equipes de trabalho atuantes em diversas especialidades. Precioso e inigualável”, elogia.
Independência
» O Hospital de Base passou a ser independente da Secretaria de Saúde e administrado por um instituto, sem fins lucrativos, em 2018. O Base foi o primeiro hospital público do Distrito Federal a adotar esse modelo de gestão. Atualmente, é administrado pelo Instituto de Gestão Estratégica do Distrito Federal (Iges-DF).Telemedicina
» Osório Rangel foi responsável pelo projeto Telemedicina, inaugurado no Hospital de Base em 1983. O médico guarda no celular a foto da página do Correio Braziliense que noticiou a ocasião — na foto, ele de jaleco; o então governador José Ornellas; e o ministro de telecomunicação da época, Haroldo Corrêa. A iniciativa possibilitava a transmissão de sinais de atividade elétrica do coração por telefone. O objetivo era auxiliar profissionais em áreas mais afastadas da cidade. O projeto não foi para frente, conta Osório. Atualmente, o Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do DF oferece o serviço de telemedicina, com uma sala de conferência onde os médicos podem discutir casos clínicos.
Um lugar de esperança
O Hospital de Base realizou, em 2019, mais de 830 mil exames, 290 mil consultas, 11.331 cirurgias e 100 transplantes (87 de córnea e 13 de rim). Além da população do Plano Piloto, o local atende pacientes de todas as regiões administrativas e de outras unidades da Federação, como a recepcionista Daiana da Silva Nascimento, 26. Moradora da Bahia, do município de Luís Eduardo Magalhães, ela viu em Brasília um caminho para tratar um quadro de pé torto congênito.Rara, a condição ortopédica costuma ser corrigida com manipulação seguida de gesso, mas esse não foi o caso dela. Nos primeiros meses de idade, os médicos informaram que só uma cirurgia corrigiria o problema, mas o preço da operação e os riscos foram barreiras. Em fevereiro de 2019, ela chegou à capital federal, onde marcou a consulta com o ortopedista Davi Haje. “As primeiras avaliações foram ótimas. Eu tinha dores e sofria muito, mas o médico foi me acalmando, me tratando superbem. Depois do atendimento, ele costumava mandar mensagem perguntando como eu estava, se tinha melhorado”, lembra. O especialista sabia que não havia casos na literatura médica sobre o tratamento de adultos de pé torto com engessamento, sem cirurgia, pelo método conhecido como Ponseti, mas se sensibilizou com Daiana e quis tentar.
A jovem colocou o gesso nos dois pés e aguardou os resultados. “Eu tinha medo. Muitas pessoas falavam que poderia não dar certo. Já tinha conhecido até quem fez cirurgia e não resolveu o problema. Mas também confiava muito no médico e tinha fé, então só precisava segurar a ansiedade para tirar logo o gesso e ver como estavam meus pés”, diz. Até o retorno, Daiana se imaginou fazendo coisas que nunca pôde, como calçar um tênis. O grande dia chegou em maio.
“Foi uma sensação incrível! Cortaram o gesso, vi meus pés depois de mais de três meses e estava tudo bem. O procedimento deu certo e chorei muito quando percebi”, emociona-se. Para deixar aquela data ainda mais marcante, o médico responsável pelo procedimento levou um presente. “Ele me deu um tênis. Quando voltei à Bahia, foi uma comoção grande na família. Minha avó não conseguia parar de chorar”, conta Daiana.
O procedimento está perto de completar um ano e faz parte da história do hospital. “Muita gente me procura hoje e pergunta como consegui o tratamento. Eu falo que foi no Hospital de Base, em Brasília. Gente de vários lugares do país, que me encontram até nas redes sociais, têm interesse em procurar a ortopedia de lá”, afirma a baiana. Agora ficam a gratidão e os sonhos. A recepcionista fez fisioterapia para reaprender a andar, voltou ao trabalho e planeja tirar a carteira de motorista. “Nunca vou me esquecer disso, marcou minha vida.”