Sobre racismo
No fim de 1994, aos 21 anos, parti para um intercâmbio de três meses na África do Sul. Fui muito bem recebido por uma família branca que morava em um bairro residencial nobre de Johannesburgo. O país tinha acabado de sair do regime de apartheid, Mandela completava oito meses na Presidência, e os jornais destacavam como as escolas públicas estavam se preparando para ter brancos e negros sentados lado a lado nas salas de aula.
Como era de se esperar, o preconceito não havia desaparecido como num passe de mágica. E voltei ao Brasil, depois de minha estada, chocado. Não com o que ouvi e vi. Mas por ter notado a incrível semelhança entre o comportamento dos brancos sul-africanos e o dos brasileiros.
Nas reuniões sociais, comentários e piadas a respeito dos negros eram assustadoramente familiares. Durante um jantar, por exemplo, todos riam dos nomes que os negros estavam dando aos seus filhos naquele tempo. “Conheci uma menininha chamada Liberty dia desses”, disse uma mulher, para a gargalhada de todos. Na mesma ocasião, um homem pegou um desenho da nova bandeira sul-africana para explicar o que significava cada uma de suas cores: “O vermelho é a nossa riqueza mineral. O verde, a nossa vegetação. O azul, o nosso lindo céu. O preto, claro, são os negros. E essa linha amarela é uma cerca elétrica para impedi-los de tomar nosso país e estragá-lo todo”. Mais gargalhadas. Em que outro lugar do mundo se zomba do nome de pobres e negros e se fazem piadas desse tipo?
Passadas algumas semanas, viajamos para a praia. Já afastado do centro, de dentro do carro, apontei para uma área repleta de casas de madeira e ruas sem asfalto. Era um bairro negro, onde moravam a passadeira e a arrumadeira que trabalhavam na casa onde estava hospedado. Nova assombrosa semelhança com Brasília. Já na casa de praia alugada por meus anfitriões, conversei sobre racismo com o chefe da família. Ele me perguntou se havia discriminação no Brasil. Eu disse que sim, mas que nossas leis, ao menos, estavam escritas de forma a dar direitos iguais a todos. O que o levou a concluir: “Sim, o erro da África do Sul foi transformar o racismo em lei”.
Foi só esse o erro? Talvez meu país tivesse criado uma tecnologia discriminatória de dar inveja à nação do apartheid. Mas ainda estava por vir o dia em que ouviria a frase mais assumidamente racista “no país mais racista do mundo”. De volta da praia, comentei com algumas pessoas que tinha ido a Durban. Então, me disseram: “É uma praia linda, mas anda cheia de pretos agora”. Quem teve coragem de proferir o comentário? Não foi um sul-africano, mas uma estudante brasileira que também estava lá fazendo intercâmbio como eu. Ela tinha 17 anos.
Crônica originalmente publicada em 11 de novembro de 2017