Monte Castelo
No domingo, escrevi sobre Monte Castelo, belíssima canção de Renato Russo, composta a partir de trechos da Carta aos Corinthos, de São Paulo, e de soneto de Camões. A menção a Monte Castelo é homenagem a um tio que lutou, na Itália, com a Força Expedicionária Brasileira para resistir ao nazismo de Hitler.
A nova ameaça de guerra me levou novamente a Monte Castelo. Conheci um pouco dessa história ao ler dois livros magníficos: Inverno na guerra, de Joel Silveira, e Crônicas da Guerra, de Rubem Braga.
O relato de Joel é mais objetivo; o de Braga mais subjetivo. São olhares completamente distintos. A delicadeza de Braga só acentua o horror da guerra. Um dos momentos mais pungentes é o da experiência de ver Silvana Martinelli, menina camponesa de 10 anos, ferida por estilhaços de uma granada. “A explosão estúpida poupara aquela pequena cabeça castanha, aquele perfil suave e firme que Da Vinci amaria desenhar. Lábios cerrados, sem uma palavra ou gemido, ela apenas tremia um pouco — quando lhe tocavam num ferimento, contraía imperceptivelmente os músculos da face.”
A altivez serena da menina comove Braga, que indigna-se e pergunta aos poderosos do mundo: “Oh! Altos poderosos de conversa fria ou voz frenética, que coisa mais sagrada sois ou conheceis que essa quieta menina camponesa? Por esse pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas”.
Certo dia, Braga foi visitar uma igrejinha bombardeada no alto de uma montanha e preferiu a imagem de um Cristo decapitado a de uma madona intacta. A desagregação humanizava o filho de Deus: “Aquele pobre Cristo de massa, sem cabeça, pendendo para um só lado da cruz, me pareceu mais irmão dos homens, na sua postura dolorosa e ridícula, igual a qualquer morto da guerra, irmão desses cadáveres de homens arrebentados que tenho visto, e que deixam de ser homens, deixam de ser amigos ou inimigos para ser pobres bichinhos mortos, encolhidos e trancados, vagamente infantis, como bonecos destruídos”.
Joel resume a guerra em uma frase contundente: “A guerra é nojenta, e o que ela nos tira, quando não nos tira a vida, nunca mais devolve”. Braga enfatiza que os homens que lutaram na Itália não formaram uma corporação de anjos. Mas apesar do mau preparo técnico e psicológico, da má seleção física e mental “se comportaram bem, às vezes milagrosamente bem”.
O cronista profetizou, naquela época, que “o fascismo é uma praga difícil de exterminar” e que no futuro poderia voltar com outro nome. Vinte e cinco anos depois da guerra, Braga retornou à Itália e revisitou os lugares pelos quais passou para uma reportagem encomendada pela revista Realidade.
Sentiu melancolia, mas percebeu que a palavra brasiliano era mágica: “Para essas rudes mulheres, esse duros homens da montanha, a palavra brasiliano soa ainda, graças a Deus, como uma senha de amigo: ela faz abrir o sorriso e os braços e a garrafa de vinho”.