Vozes do passado
Uma vez, ouvi dizer que a biblioteca da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes era assombrada. Ouvi diretamente de uma pessoa que trabalhava lá. Logo após o início do expediente, ou no fim do dia, quando todos tinham saído e os bibliotecários se preparavam para apagar as luzes e deixar o local, era possível ouvir livros mudarem de lugar nas prateleiras, o barulho do fim determinado de uma leitura arrebatadora e cadeiras arrastando. Sombras de visitantes que liam sombras de livros em sombras de cadeira cujo som materializava-se inesperadamente quando o silêncio reinava por completo.
Fiz algumas visitas circunstanciais ao espaço na primeira metade da década de 1990, quando ainda existia o Café Belas Artes, para comandar a bagunça após o dia de trabalho. Uma ou outra vez, enquanto transitava cuidadoso entre estantes, seguido pelo meu irmão mais novo, pensei ter ouvido livros se abrirem ou se fecharem a um ou dois corredores de distância. Nunca menos. Não arrisco dizer que se trata de experiência sobrenatural. Acho que tem muito mais a ver com imaginação e a forma com que a gente manipula as lembranças, que, é bom frisar, não têm tanta relação com os fatos passados como gostaríamos.
Procurar fantasmas entre os livros, ainda assim, era mágico. Quem poderia ter medo de espíritos que leem? Espectros que passam a eternidade vagando em corredores de bibliotecas, cercados de títulos, com tempo para absorver tudo o que quiserem, sem precisar parar para comer, dormir ou ir ao banheiro. Capazes de citar, de cor, Machado de Assis, José Saramago, Gabriel García Marquéz, Fiodor Dostoiévski... Em vez de medo, dá uma certa inveja. A gente sabe que não vai dar pra ler tudo o que queremos em uma só vida. Por outro lado, não temos nenhuma certeza sobre haver mais de uma vida. E o mais provável é que não haja.
Algumas histórias de terror falam de casas e lugares amaldiçoados construídos em cima de cemitérios antigos. Os residentes mais antigos voltam para reclamar a propriedade e expulsar (ou coisa pior) os novos moradores. Se essa for a regra, pode-se dizer que, além da mística da própria biblioteca, repleta de silêncio solene e autores mortos prontos para conversar com os vivos através das páginas, o espaço foi construído em cima de um teatro. Nada mais fantasmagórico que a constante troca de identidades e o banzo pós-espetáculo que toma uma sala vazia. Experimente passear pelos corredores subterrâneos do Dulcina ou do Teatro Nacional e compreenderá.
Talvez, o ectoplasma da energia boêmia e criativa arraste-se escada acima e invada os corredores, repetindo no silêncio os sons dos últimos leitores a caminharem pelas lombadas com nomes de autores, às vezes, desconhecidos. Talvez seja só a mística do ambiente que insufle, em bibliotecários, professores, alunos, atores e atrizes, o clima propício para inventar e viver histórias, parte delas, sobrenaturais. De qualquer forma, é verdade que as vozes dos mortos estão ali, carregadas pelo tempo, em cofres de papel, para abrir os horizontes daqueles que se arriscarem a ler. Um fogo fátuo do passado a iluminar o presente. Eu não acredito em bruxas...