O coração é um dos maiores símbolos da vida. Sempre em movimento, ele é vital para todas as outras partes do corpo. Por isso, não à toa, a Rodoviária do Plano Piloto é considerada o “coração” de Brasília. No centro da asa do avião, o local recebe cerca de 700 mil pessoas diariamente: brasilienses de diferentes idades, regiões e ocupações, que passam, muitas vezes, em ritmo acelerado. Os sons dos alto-falantes instalados nas plataformas acabam se confundindo com o barulho dos ônibus, dos passos e dos gritos de ofertas dos comerciantes, um cenário bem diferente do projeto inicial de Lucio Costa. Entre reclamações, como a falta de acessibilidade e a insegurança, o espaço acumula histórias que se misturam com as de Brasília. Na segunda matéria da série Brasília Sexagenária, o Correio reencontra o espaço localizado no coração da cidade e que completa 60 anos em 12 de setembro.
A rodoviária parece um lugar à parte no meio do Eixo Monumental. Se, no gramado central, a calmaria e a visita de turistas predominam, no terminal, o que ganha destaque são os ruídos, a correria do dia a dia, as filas de espera e os veículos lotados. “Aqui não tem essa história de rico ou pobre, todo mundo se encontra, toda hora. É um ponto com metrô, ônibus, perto de shopping”, opina Agna da Cruz, 35 anos, usuária do transporte público. A baiana, que mora na capital, sente gratidão por Brasília, mas pede mais cuidado. “O governo tem oportunidades boas na rodoviária, porque é um espaço grande que poderia ser bem aproveitado. Penso que seria ótimo se tivesse, por exemplo, uma galeria de arte, com acessibilidade, garantindo um complemento à educação e trazendo segurança”, sugere.
Para o historiador Wilson Vieira, a rodoviária reflete a realidade de Brasília. Ali, estão moradores do Plano Piloto, das demais regiões administrativas e do Entorno. “Ela se tornou um grande centro metropolizado da população do Distrito Federal. Foi além do planejado, virou um espaço popular”, ressalta. Vieira explica que o projeto inicial era um centro de conveniência, com cafés e restaurantes, algo parecido com o que é o aeroporto hoje. “À medida que a cidade foi crescendo, a população foi assumindo este espaço. A presença do comércio formal e informal é característica da nossa história como formação da cidade. São coisas que demonstram que o desenho de um arquiteto não consegue planejar a tomada popular do espaço. O povo é muito mais forte e mais presente do que a prancheta de um profissional”, destaca.
Um dos habitantes da capital que fazem parte desse processo é Joabem José da Silva, 49. Ele chegou ao DF em 2004 em busca de oportunidades e hoje reclama do tratamento dado aos espaços públicos. “Tenho dificuldades de locomoção, uso muletas e moro nas ruas, então sinto ainda mais os problemas. Faz anos que a escada rolante não funciona. Lembro-me de poucas vezes que pude usar, que estava normal. Isso é algo grave, as pessoas se machucam por falta de acessibilidade. É caso de direitos humanos”, avalia. Procurada, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) informou que “o processo licitatório das escadas rolantes e dos elevadores está dentro da normalidade” e que o órgão “está analisando as propostas das empresas que participaram da concorrência para, em seguida, fazer a homologação”.
Obra complexa
A construção da Rodoviária do Plano Piloto é considerada por especialistas uma das mais complexas da época em que ocorreu. Atrás dos paredões que seguem sentido Eixos Sul e Norte, há grandes vãos. “São caixas, espaços livres enormes. Dava para construir um shopping ali dentro”, detalha o historiador Wilson Vieira. O professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Antônio Carlos Carpintero explica que as vigas de construção da rodoviária são protendidas, ou seja, construídas com ferros internos, que pressionam o concreto e aumentam a possibilidade de fazer grandes vãos.
Para Antônio Carlos, apesar da importância da obra, ela não exigiu um trabalho inédito. “Os vãos que ela tem são grandes. A rodoviária estava no limite máximo da construção da época, mas não era nenhuma técnica desconhecida”, avalia. Porém, ele alerta que essas ferragens, assim como toda a obra, exigem manutenção constante, pois podem diminuir a capacidade de sustentação se oxidarem.
O arquiteto ainda comenta que a rodoviária foi construída a 750 metros do lugar do projeto original, em direção à Torre de TV. “Ela estaria na altura da W3, mas, para a própria construção, foi feita essa mudança, e o Lucio Costa encarregou-se de projetar a rodoviária da forma que foi feita”, conta. Antônio acrescenta que a plataforma superior ficaria no chão, ligada aos setores bancários e comerciais. “O pedestre poderia circular livremente nesse plano.”
Segurança
Citada constantemente como ponto negativo do terminal, a segurança acaba sendo uma barreira até mesmo para a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). “O alto índice de reincidência é uma grande dificuldade. Muitos detidos no DF voltam a praticar outros crimes, por vezes na mesma região, devido às brechas contidas na legislação, que facilitam o retorno dos criminosos às ruas e geram a sensação de impunidade”, informou a corporação, em nota oficial. Porém, nos primeiros dias de 2020, um novo esquema de policiamento passou a atuar na área. “Antes, os policiais ficavam no posto fixo na parte superior da estação. Agora, o patrulhamento é feito em viaturas e assessorado pelo Comando Móvel estacionado na rodoviária”, disse a PMDF.
Reformas constantes
Os problemas da rodoviária são antigos. O terminal passa por constantes reformas. Em junho do ano passado, parte da estrutura foi interditada após riscos de desabamento. Técnicos do governo identificaram crescimento de algumas fissuras, o que poderia provocar um desmoronamento, caso não fossem feitos os reparos necessários. Para garantir a segurança, o trânsito de carros na parte superior, sentido sul, foi interrompido.
A estrutura precisou ser demolida e reconstruída. Segundo a Novacap, a obra foi concluída no início de novembro. Também foram feitas novas instalações elétricas e hidráulicas; instalados ar-condicionado e sistema de som; executado novo piso em granitina em toda a extensão da rodoviária; trocado o piso tátil direcional; e substituída toda a iluminação interna e de borda.
Comércio forte
Boa parte dos brasilienses defendem que a capital tem sim suas comidas típicas — mesmo com pouca idade — e que um prato parte dessa identidade é vendido na rodoviária. O pastel da Viçosa é tradição desde o final da década de 1960. O sabor é conhecido por muitos candangos, mas poucos sabem que o estabelecimento surgiu por causa de um imprevisto, como lembra a atual proprietária, Patrícia Rosa. “A Viçosa foi fundada pelo meu pai, por um acaso. Ele estava em lua de mel e ia pegar um ônibus com a minha mãe, mas eles acabaram perdendo o coletivo. Para passar o tempo, os dois comeram um pastel vendido na rodoviária. Meu pai disse para o vendedor que sabia como melhorar aquela comida”, relata a filha dos dois. Na visita seguinte do casal de mineiros à Brasília, surgiu a compra do pequeno comércio, que acabou se expandindo.
A pastelaria se consolidou logo nos primeiros anos da inauguração da Rodoviária. “Era uma época da capital muito nova, então não tinham tantos processos burocráticos, os negócios abriam com rapidez”, conta Patrícia. Para ela, o sucesso do estabelecimento é explicado por um conjunto de fatores. “Com o tempo, fomos percebendo que a localização era excelente, porque esse é o lugar onde a vida acontece. O fluxo de pessoas é grande, nossos funcionários são respeitosos com os brasilienses e o produto que vendemos tem qualidade de uma forma acessível”, define. Mas Patrícia também lembra que há muito a melhorar. “Nem sempre damos conta de oferecer um serviço impecável por conta dos problemas que conhecemos da rodoviária. A segurança e a limpeza, por exemplo, precisam ser melhor trabalhadas. É uma luta em conjunto com a administração e o governo. Não é simples, porque esse ponto é como se fosse uma cidade dentro do Plano Piloto”.
Mesmo com as barreiras de manter um estabelecimento acessível e de qualidade entre as famosas plataformas, a Viçosa acabou se tornando um símbolo de Brasília. “Nós colecionamos histórias curiosas de pessoas que associam a pastelaria a algo que faz parte da identidade da capital. Um turista dos Estados Unidos já veio conhecer os pontos típicos do Distrito Federal e gravou um vídeo com a gente, dizendo que a Viçosa era famosa aqui. Recentemente, também, um português visitou nosso comércio porque disse ter lido em uma revista sobre a gente”, disse Patrícia. A dona do estabelecimento lembra ainda que é comum receber clientes que participaram da construção da capital e têm prazer em passar alguns minutos só admirando a fachada famosa. “Tudo isso é muito legal, mostra que estamos fazendo história junto com a rodoviária e Brasília”, finalizou.