Um sonho flamenguista
Gabigol domina a bola aos 48 do segundo tempo. Não sei bem o que passa pela cabeça do atacante, que, num drible, desconcerta dois zagueiros do Liverpool. Os ingleses no chão olham com incredulidade. Geralmente, os europeus estão no topo, e nós, latino-americanos e subdesenvolvidos, nos deitamos aos pés deles. Faz muito tempo que o mundo é assim e que o futebol se tornou assim também. É bonito ver certo desarranjo.
Gabigol trata a bola com apego. Sabe que o momento exato do gol é místico e inexiste sem a força da fé. De alguma maneira, acredita o jovem Gabriel Barbosa, a bola vai fazer o improvável contorno, ultrapassar os jogadores adversários, ignorar o goleiro e beijar o tecido áspero das redes. Gabigol ensaia, mas não chuta.
Gabigol sabe que o tempo não é tão relativo na hora de marcar. Para o sucesso, é fundamental ter precisão. Um segundo antes, e o goleiro chega, e a luva acaricia a bola como quem estraga a festa de uns e anima a de outros. Gabigol adia o momento, porque acredita que ainda não é hora e só poderá atingir o objetivo se ignorar o sentimento de urgência daquele instante.
Gabigol fecha os olhos. Não quer ver onde vai dar. Ele pensa em São Bernardo do Campo. Na memória, é um menino meio franzino de cabelo esquisito e voz fina jogando pelada no meio do asfalto. Lembra-se do dia em que chutou o chão e arrancou a cabeça do dedão, mas, mesmo assim, foi feliz para casa porque tinha ganhado. Com sangue e tudo.
Gabigol abre os olhos, mas fecha de novo. É tudo muito rápido. O coração bate sem sincronia, mais rápido do que os tambores das torcidas das épocas em que torcidas podiam ter tambores. No pensamento de Gabigol, o estádio de Doha transformou-se naquela rua de asfalto, e o gol é o chinelo de um dos moleques do bairro.
Gabigol finalmente chuta e abre os olhos. Alguma coisa muito doida está acontecendo enquanto a bola sai dos pés do jogador e vai atravessando a área. Alisson, o goleiro mais bonito do mundo, desaparece, a torcida desaparece, o mundo desaparece, e Gabigol não sabe, nem vê mais nada, caído no chão, com as vistas turvas.
A bola chega finalmente ao último ponto antes do momento final. Se passar, a taça. Se ficar, Deus sabe... Gabigol abre os olhos à espera do resultado. O despertador toca um pagode novo, do Dilsinho. A sexta ; ah, a sexta ; será um longo dia antes do sábado.