Jornal Correio Braziliense

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Crônica da Cidade

Quixote candango


No fim de semana, fui ao Teatro Galpão, no Espaço Cultural Renato Russo da 508 Sul, assistir ao espetáculo Mamulengo de la Mancha, do grupo Trapusteros, de Izabela Brochado e Marcos Pena. Tive várias alegrias. Em primeiro lugar, fiquei comovido de estar novamente no Galpão, palco de tantos acontecimentos memoráveis nas décadas de 1980 e 1990.

Naquela época, o conjunto formado pelos teatros Galpão, Galpãozinho e Teatro da Escola Parque era chamado pelos artistas de Brodway Candanga. Aquele território fervilhava nas noites brasilianas. Os espetáculos recebiam, quase sempre, grande público. Fiquei feliz em reencontrar o Teatro Galpão lotado para assistir ao Mamulengo de la Mancha.

A peça é uma adaptação livre do clássico Dom Quixote, de Cervantes. Quixote e Sancho se extraviam da Espanha, pegam um barco à deriva e desembarcam em Recife, em pleno carnaval. São presos pela polícia como imigrantes ilegais. O teatro de sombras se transmuta em teatro de mamulengo.

Brasília é uma cidade que propicia diálogos. E o espetáculo resulta do encontro entre Izabela Brochado e o companheiro Marcos Pena. Ela é mineira, professora de artes cênicas da UnB e pesquisadora da tradição do mamulengo nordestino; ele é espanhol e manipula bonecos. Izabela coordenou a pesquisa nacional que levou ao tombamento do mamulengo como patrimônio cultural brasileiro em 2016.

Na peça, o teatro de sombras se funde com o teatro de mamulengos de uma maneira muito feliz. O Quixote é uma utopia do desejo de justiça. A montagem do Trapusteros se apropria do clássico para fazer um espetáculo sobre as grandes questões contemporâneas da globalização: a flexibilização do trabalho, o trabalho escravo, a imigração e a opressão contra as mulheres.

É um conjunto de desafios perfeitos para o Dom Quixote, que encarna a utopia de justiça. É contra esses novos moinhos de vento que ele peleja. Pode parecer sério e panfletário, mas não é. A montagem dos Trapusteros é poética, onírica e bem-humorada. Faz sonhar e provoca o riso crítico, o riso libertário do desejo de justiça. As crianças riem, cantam e se divertem com os bonecos.

A montagem de Izabela e Marcos renova o Quixote e o atualiza para os tempos pós-modernos e pós-humanos em que vivemos. O humor é a melhor arma contra a impostura, a prepotência, a ignorância e a injustiça.

O espetáculo funde pesquisa e experimentação, sondagem e imaginação, tradição e invenção.

Dom Quixote é um herói moral, esgrime valores tão altos que, mesmo quando é derrotado, se eleva a nossos olhos. Vale lembrar que o projeto é patrocinado pelo FAC. A cidade tem muita gente criando obras relevantes em múltiplas áreas e linguagens.

O terceiro motivo de alegria é a administração competente do Espaço Cultural Renato Russo, que estava em ruínas, mas renasceu em pouco tempo e voltou a se tornar um ponto de referência da cidade.