;Toda a pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas.; É assim que Ana Flávia Magalhães Pinto começa a contar sua história: com a música Caminhos do Coração, de Gonzaguinha. Aos 40 anos, a professora da Universidade Brasília (UnB) entrelaça a própria trajetória com a de outras pessoas negras, como se a luta e a resistência delas, no passado, fizessem com que ela chegasse onde chegou. ;Estar aqui, a despeito de todos os desafios, é honrar um esforço coletivo, o que faz com que, apesar de ser a única professora negra deste departamento (de História), eu não sinta que estou aqui sozinha;, resume a doutora.
Ana dedicou a carreira profissional a estudar as narrativas de pessoas negras no século 19, e a evidenciar como, a partir dos lugares da liberdade, seja na escravidão, seja na pós-abolição, essas figuras existiram e defenderam a própria humanidade no mundo. Foi dessa forma que a professora redescobriu Machado de Assis e outras tantas vidas que, segundo ela, foram esquecidas e alteradas numa fábula sempre escrita por pessoas brancas. Formada em jornalismo e em história e doutora e pós-doutora em história, Ana Flávia gosta de olhar para o passado para explicar os dias atuais e o futuro. ;Sem que esse debate seja feito em ampla escala, não só dentro da sala de aula, mas com a comunidade escolar, o que inclui trabalhadores, pais e mães de alunos, a gente não realiza esse acerto de contas que o Brasil precisa ter com a própria história;, argumenta.
É por isso que o começo da trajetória na UnB foi tão importante: apesar de já cursar jornalismo em uma universidade particular e depois engatar um curso de letras-português, que não chegou a terminar pela chance de fazer um mestrado, foi ali, na universidade, que conheceu o coletivo EnegreSer ; uma organização social que atuou na federal combatendo e denunciando o racismo. Foi dentro do movimento que Ana começou a estudar e entender todo o processo histórico que faz com que negros tenham menos espaços dentro da sociedade.
;Onde falaram que as pessoas negras não podem estar? Pois é lá que vamos ficar. O que não podemos fazer dentro da universidade que diz respeito a ações dela? É pesquisa? Estudo? Pois é nesse campo que vamos atuar;, garante. Ela foi a primeira integrante do grupo que se tornou professora do câmpus Darcy Ribeiro ; conquista alcançada em 2018. ;Todo esse esforço de reconhecimento de pensamentos e experiências negras foi silenciado ao longo do tempo. Essa rede me fazia não só acreditar, como me fazia ter condições mínimas para levar isso adiante;, completa.
Com essa vontade, Ana começou o mestrado, o doutorado e depois o pós-doutorado. Ganhou prêmios, lançou o livro Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista, e hoje luta para que essa história não seja esquecida. ;É muito bom reencontrar com esse passado;, diz. ;Nada como um dia após o outro costurando a luta de todos eles.;
Desigualdade
Dados do informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostraram que, pela primeira vez, negros são maioria no ensino superior público. O documento revelou que a proporção chegou a 50,3% em 2018. O valor, claro, ainda está aquém das 55,8% de pessoas que negras que vivem no Brasil, mas é um avanço. No caso da docência, no entanto, o cenário é outro. ;Se por um lado, avançamos bastante na luta de inserção de estudantes negros nas universidades, no que diz respeito à docência, a gente ainda tem muito o que fazer;, afirma.
Mas, a história de Ana começa antes da universidade e dos títulos. Nasceu em Planaltina, em 1979. Na mesma cidade, cresceu, frequentou escola pública e, depois, quando terminou o ensino médio, conseguiu uma vaga em uma universidade particular para cursar jornalismo. O pai, que veio de uma família de trabalhadores rurais e foi expulso da própria terra durante os anos 60, saiu de Goiás para tentar uma nova vida em Brasília. A mãe, alfabetizada apenas aos 15 anos, teve uma trajetória diferente, que acabou abrindo as portas para as duas filhas. Conseguiu fazer o magistério, licenciatura e, depois, passou a dar aulas de matemática. ;Como acontece com muitos homens negros, meu pai era apaixonado por estudos, mas teve que abrir mão para trabalhar. Apesar de nós (Ana e a irmã) não sermos as primeiras a fazer o ensino superior na família, fomos as primeiras a fazê-lo como uma estratégia indispensável. No momento em que minha mãe fez, as coisas mudaram muito;, conta a professora.
Durante a infância, cresceu num Brasil mascarado de democracia racial, apesar de não haver representatividade em nenhum espaço infantil. ;Como em muitas crianças, isso gerou um constrangimento. E também uma dificuldade a partir daquilo que eu era, da minha própria família e também de me afirmar e ter uma visão positiva do meu passado, e do que poderia ser o meu futuro;, relata.
Contudo, Ana reforça que, apesar da difícil trajetória, negros sobrevivem ao racismo brasileiro. ;É disso que eu me esforço em falar, das histórias que não sucumbiram a essas camadas de negação da nossa existência. E nós existimos.;, diz. É assim que Ana Flávia entende que hoje, mais do que nunca, a luta deve continuar para conquistar espaços e recontar a história para que ela não caia no esquecimento.
Por isso, ao lembrar do passado e considerar o presente, Ana dá o sinal para o futuro: ;Apesar da imagem que o Brasil tem de pessoas negras, há esforços diários e praticamente infinitos para que uma pessoa negra não sucumba e não abra mão de seus sonhos. E minha trajetória fala muito disso;.
Especial
A série Histórias de consciência presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/ historiasdeconsciencia