Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Conjuntura política

Seu Gabriel detestava ser chamado de ;seu;, mas acostumou-se a ser chamado de velho - ou velho pai - no último quarto de vida. Tinha visão afiada para entender a política e seus movimentos e acontecimentos. Desenvolveu a habilidade na faculdade de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e na militância política no Partido dos Trabalhadores, que, aos 50 anos, ficara no passado. Tinha o hábito de verbalizar o que pareciam impropérios provocativos, que franziam o cenho de toda a sala para, depois, desfiar uma explicação que relaxava os músculos da face até que os olhos estivessem abertos, e os queixos, caídos.

Também foi ator, diretor e professor de teatro na Dulcina de Moraes, no Conic, onde, dizem, não tinha a menor pena dos alunos. Talvez tenha sido influenciado pelo sogro, esse sim ;seu;. Seu Marcos era professor de francês e só dava duas notas. Ou o aluno tirava 10, ou tirava zero. Foi ali, no Setor de Diversões Sul, que o velho Gabriel acabou preso pela polícia ao militar pela anistia política. Isso em uma manhã ensolarada em um dia perdido na segunda metade da década de 1970. Estava com a namorada e um grupo de colegas do partido. A região central era considerada área de segurança nacional. Portanto, era proibido o exercício desse tipo de atividade política na localidade.

Sabendo que exerciam atividade subversiva, o jovem Gabriel e os colegas militantes combinaram a ação. Dividiram-se em grupos. Plataforma superior da Rodoviária do Plano, plataforma inferior, estacionamento do Conjunto Nacional, e a ordem era distribuir os folhetos o mais rápido o possível e se reagrupar no Conic. Gabriel foi com um grupo para a parte de baixo da rodoviária. A namorada ficou nos estacionamentos superiores. O risco de repressão a uma ação coordenada e veloz era baixo. A garota, por exemplo se desfez dos panfletos sobre anistia o quanto pôde. Ainda sobraram muitos, mas, com baixo fluxo de pessoas, achou melhor voltar para o ponto de reagrupamento.

Tomando por base a própria ação, a moça imaginou que logo encontraria o restante dos amigos. Em vez disso, um motorista do Serviço Social do Comércio (Sesc) da 913 Sul que passava por lá reconheceu a jovem com folhetos e parou para alertá-la. ;A polícia parou seus amigos lá embaixo;. Na tensão, ela pensou rápido. Sem perguntar, jogou os folhetos todos dentro do carro do conhecido, que arrancou em seguida. O próximo passo foi procurar ajuda. Gabriel não estava mais lá embaixo nem havia voltado para o ponto de encontro. Outros dois conseguiram escapar.

Começou, então, o movimento para conseguir a liberdade do grupo. Apreensiva, a mãe de Gabriel, dona Hilda, andava aflita pelas janelas do apartamento em que moravam, na Asa sul. Não sabia se imaginava ou se realmente escutava os gritos do filho. A moça, com um primo, correu para a casa da idosa. Ela os recebeu feito onça. Repreendeu a nora. ;Só não te bato porque não é minha filha;, disparou. Os dois correram para o quarto do rapaz e recolheram, às pressas, livros que poderiam ser usados para acusá-lo e mantê-lo preso. Temas sobre política, comunismo e direitos humanos. Em pouco tempo, sem os livros na prateleira, na escrivaninha e no chão, o espaço parecia abandonado.

Foi o advogado e político Sigmaringa Seixas que trabalhou pela liberdade do grupo sem maiores desembaraços. A moça e os sogros buscaram Gabriel na 1a delegacia de Polícia. Cansados depois de um dia de tantas reviravoltas, foram os três para o apartamento na Asa Sul. Havia uma certa expectativa, dessas bobas e inexplicáveis que surgem no fim de um dia tão intenso, de como o rapaz reagiria ao se deparar com o quarto praticamente vazio. A namorada seguiu com ele até a porta. A poeira na prateleira marcava o lugar onde, antes, os exemplares ficavam. Ele esquadrinhou o espaço com o olho e desatou a rir. Sob o abajur, o mais perigoso dos documentos: uma resma de papel escrita em punho. Uma análise de conjuntura política e planos de ações de militância esquecidos no desespero.