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Pesquisa, militância e respeito

Jaqueline de Jesus foi a primeira transexual a entrar para o doutorado na Universidade de Brasília. Hoje, a ceilandense vive no Rio, onde é professora universitária. Engajada, ela ajudou na formulação das cotas raciais da UnB e é uma das organizadoras da Parada LGBT da cidade

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Uma mulher de sucesso. Assim pode ser definida Jaqueline Jesus. Aos 41 anos, a brasiliense tem um currículo extenso. O último título foi de pós-doutora pela Fundação Getulio Vargas e de pesquisadora do Centro de Políticas e Desigualdades em Saúde, da Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Além das conquistas, a psicóloga carrega a fuga de uma triste estatística. Jaqueline é transexual e negra. Cerca de 82% dos travestis e transgêneros não chegam a terminar nem a escola fundamental, de acordo com levantamento da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e apenas 34% dos estudantes de ensino superior são negros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

É tanto que ela foi a primeira transexual a terminar um doutorado pela Universidade de Brasília (UnB). Isso foi em 2010. Um dos grandes diferenciais dela? O apoio familiar. ;Vim de uma família que valoriza muito os estudos. A minha mãe era professora, ela foi a primeira a entrar na universidade. Sempre tive acesso a livros. Depois que eu já era crescida, meu pai também fez faculdade;, conta.

E o apoio não foi no incentivo para ter uma carreira, mas também em aceitá-la como ela é. Jaqueline se assumiu como Jaqueline há pouco mais de 10 anos, quando estava no doutorado, outro fator que ela cita como facilitador. ;Eu decidi, aos 29 anos, que me reconhecia como mulher trans e resolvi começar minha transição e viver como mulher. Tive muito apoio da minha família, bem diferente do que costuma ser;, recorda.

;Mesmo sendo uma pessoa negra que conseguiu lutar e ocupar meu espaço enquanto negra. Não sei se tivesse passado pela transição antes teria chegado à universidade. São vários fatores a serem avaliados;, destaca.

Carreira de sucesso

Dessa forma, a moradora da Ceilândia tomou como natural que fosse para a universidade. O primeiro curso escolhido foi química, para depois perceber que sua vocação estava na psicologia. Começou a militar por causas raciais e LGBTs na graduação, ainda em 1997. ;Sempre quis associar minha pesquisa com a psicologia e a prática da militância.;

E ela conseguiu. No mestrado, iniciado assim que terminou a graduação, ela pesquisou como os libertadores de escravos enxergam a questão. Ao mesmo tempo, a jovem psicóloga foi convidada para ser assessora do vice-reitor da universidade à época, Timothy Mulholland, e ajudar na formulação das cotas raciais. A UnB foi pioneira na política. O ano era 2003, de lá para cá, quase oito mil negros ingressaram na instituição por meio da política pública. ;Foi bem desafiador. A temática era questionada pela mídia e também pelo meio jurídico;, lembra.

Em 2006, ela entrou para o dourado. ;Dessa vez, escolhi um tema mais político, que foi investigar as paradas do orgulho LGBT;, explica. O engajamento de Jaqueline a levou a fundar uma ONG de pesquisa ligada à sexualidade de gênero, ser eleita como presidente do Fórum LGBT do DF e do Entorno e ser uma das organizadoras da Parada LGBT de Brasília.

Mas não parou por aí, Jaqueline, então, partiu para o pós-doutorado. Por isso, resolveu sair de Brasília. Foi para o Rio de Janeiro com apoio da Fundação Getulio Vargas (FGV). No Rio, ela começou a atuar no núcleo de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) atendendo os moradores do Complexo da Maré e passou no concurso para ser professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), onde hoje dá aulas para os cursos ligados à economia criativa. ;Ser professora está no meu sangue. Detesto usar esse clichê, mas apesar de suas limitações, ele facilita a compreensão do que eu quero dizer pelo fato de ser filha de professora. Sala de aula é um lugar que eu conheço desde antes de conhecer a mim mesma. Na cesta de vime em que minha mãe me levava, quando bebê, para assistir suas aulas no curso de pedagogia;, relata em de suas publicações nas redes sociais.

Uma marca triste

Jaqueline concorreu a deputada estadual do Rio nas últimas eleições. Ela e mais 32 mulheres negras resolveram fazer da candidatura uma homenagem a vereadora assassinada Marielle Franco. Dessas, três foram eleitas. ;Foi uma experiência bem interessante, cansativa, mas rica. Foi possível observar como a política é extremamente focada na ideia do cândido homem, hétero, cisgênero, e como isso é prejudicial para a mulher de maneira geral;, explica.

A ativista recorda que foi escolhida por Marielle Franco para receber a medalha Chiquinha Gonzaga, uma honraria entregue a personalidades femininas que tenham se destacado em prol das causas democráticas, humanitárias, artísticas e culturais. ;Fui a primeira mulher negra e trans a receber. Isso marcou muito. Eu estava com ela, em 8 de março de 2018, em um evento e, no dia 14, depois de um debate, ela foi executada. O que mostra a vulnerabilidade da mulher negra, favelada, LGBT. Ela ficou muito exposta. Já chegaram matando logo;, lamenta.

Publicações

Jaqueline fez de seu trabalho uma obra, e a intenção e os frutos podem ser vistos. Ela tem vários livros publicados e não para uma segundo, entre um evento e outro. A entrevista até teve que ser interrompida para Jaqueline partir para mais um lançamento de livro. Mas ela garante que tudo vale a pena. ;Tem momentos de tristeza que ficamos desanimado com o mundo, mas buscamos nos fortalecer;, diz.

Jaqueline ainda lembra que ela é um exemplo para suas alunas e pessoas negras e trans. ;O que é ser mulher trans negra depende de cada uma. Ser Jaqueline é ser uma mulher trans negra que acredita muito nas pessoas, acredita no poder do conhecimento. Só a educação que vai fortalecer as pessoas discriminadas. Eu luto por isso. Eu sigo lutando como professora para que a gente busque uma conscientização, para que nos colocamos no lugar do outro e entendermos que diversos somos todos;, afirma.


Especial
Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/historiasdeconsciencia


Conheça algumas publicações da psicóloga e ativista

Transfeminismo: Teorias e prática

; Autora: Jaqueline Gomes de Jesus
; Editora: Metanoia Editora
; R$ 35
; 206 páginas
; Homofobia: Identificar e prevenir
; Autora: Jaqueline Gomes de Jesus
; Editora: Metanoia Editora
; R$ 34
; 111 páginas


O que é Racismo?

; Autores: Jaqueline Gomes de Jesus, Paulo de Carvalho, Rosália Diogo, Paulo Granjo
; Editora: Escolar
; 127 páginas


Ainda que tardia: escravidão e liberdade no Brasil contemporâneo

; Autora: Jaqueline Gomes de Jesus
; Editora: Gramma Livraria e Editora
; R$ 19,90
; 128 páginas
; Travestis e prisões: Experiência social e mecanismos particulares de encarceramento no Brasil

; Autores: Guilherme Gomes Ferreira (Autor), Rapha Jacques (Ilustrador), Maria de Fátima Beghetto (Editor), Jaqueline Gomes de Jesus (Prólogo), Aline Kerber(Introdução), Eduardo Pazinato (Introdução)
; Editora: Multideia Editora
; R$ 15
; 195 páginas