;Ser e tornar-se negro é ter a dimensão política do que é ser uma pessoa negra no mundo. Não é só a diferença de melanina.; Essa é a visão de Nelson Fernando Inocencio da Silva, 58 anos, professor do Departamento de Artes da Universidade de Brasília (UnB). Filho de pais cariocas que vieram para o centro do país transferidos, Inocencio é um dos brasilienses que ajudaram a dar forma ao movimento negro na capital.
Com 17 anos, começou a participar de grupos que buscavam construir uma identidade negra no Distrito Federal. Por meio da arte, encontrou seu jeito de contribuir. ;Eu entrei na universidade já com uma formação política, que o ativismo me deu;, relata. Como calouro, em 1980, Inocencio lamentava o fato de ser uma das poucas pessoas negras do ambiente.
;Era tão rara a presença de estudantes afrobrasileiros que, às vezes, vinham falar comigo em inglês ou francês, achando que eu era aluno do convênio do Brasil com os países africanos;, lembra. Para ele, ser o único negro em um local não era motivo de orgulho ; como ouviu de muitas pessoas. ;Isso não era algo para ser celebrado;, diz.
Esse cenário mudou, quando comparado com 40 anos atrás. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pela primeira vez, a população que se declara preta ou parda passou a representar mais da metade (50,3%) dos alunos de ensino superior da rede pública. ;A paisagem do câmpus tem sofrido uma mudança. Ainda não é radical, mas é importante;, opina.
Como professor da UnB desde 1995, ele duvida da estatística. ;É uma presença mais significativa do que no passado, mas não é majoritária.; E chama a atenção para o baixo número de professores negros. ;É ainda mais diminuto na carreira docente. Nós não chegamos a 5% do total, talvez nem a 3%;, calcula.
Tabu
Uma das principais vitórias da luta contra o preconceito no Brasil, segundo Inocencio, é poder colocar o racismo em pauta como um dos temas de importância nacional. Para ele, houve um ;adensamento; do debate, mas ainda é um tabu. ;Sou de uma época em que o mito da democracia racial era algo muito forte no Brasil. Com muita dificuldade, se admitia o preconceito racial;, comenta.
No fim da década de 1970, em pleno regime militar, ele ingressou na vida ativista. ;Nós ousamos falar de racismo quando o assunto era tratado como subversão. Fizemos um trabalho corajoso.; Na época, a questão racial não era preocupação das organizações. ;Mesmo as mais avançadas não tinham convicção de que o racismo era um fenômeno extremamente danoso. Era quase um monólogo, poucas ouviam;, ressalta.
De lá para cá, a luta das entidades ganhou maior espaço. Mas Inocencio alerta: ;Lutar contra o racismo não pode ser um compromisso só do movimento negro. Não fomos nós que inventamos o problema. O compromisso é da sociedade;. Na avaliação do educador, autor de três livros sobre o tema, a conjuntura política e social não é favorável para os movimentos sociais. ;Estamos vivendo um retrocesso intenso, mas não vamos esmorecer. É um absurdo que um país como o Brasil, com a segunda maior população negra do mundo, a trate da forma como vem tratando;, critica.
;Artivismo;
Publicitário por formação, Nelson Inocencio sempre teve aptidão pelas artes. Foi o medo do curso de educação artística acabar que o fez pedir transferência para comunicação social, área em que também fez mestrado. Segundo ele, a parte midiática da luta é fundamental, porque há um vício histórico da sociedade brasileira de ;sobrerrepresentação de brancos e uma subrepresentação de negros e indígenas;. É equivocado, contudo, na opinião do doutor em artes, dizer que o negro nunca foi representado. ;A representação sempre existiu, mas sempre tendeu para o lado negativo: como caricatura, exótica e risível. Era a desumanização e não o reconhecimento;, argumenta.
Apesar de reconhecer a importância estratégica da comunicação para ampliar o debate racial, é pela arte que Inocencio mais manifesta seu ativismo ; o qual resume como ;artivismo;. ;A arte pode ser transformadora, se ela tem intenção. Eu me comprometi com a arte de modo que o meu trabalho fosse engajado;, explica.
A arte tem a capacidade de sensibilizar, e essa é uma das funções da militância negra, de acordo com Inocencio. ;Quando eu digo sensibilizar, falo de agir. O sentimento tem que se transformar em alguma coisa;, esclarece. Ele acrescenta que a sensibilização para transformar é tanto do negro em relação à sua consciência quanto dos outros membros da sociedade quanto à questão racial. ;Todos nós precisamos nos responsabilizar, se a gente quer uma sociedade verdadeiramente democrática.;
Especial
Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/ historiasdeconsciencia