Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Velho oeste Minas Gerais

Dona Maria Rosa era mulher à frente do seu tempo. Fazia contas, datilografava e trabalhou em banco nas Minas Gerais quando não era comum que acontecesse. Fazedora de doces e contadora de histórias, morreu quase sem memória, na cama, na casa de uma das filhas, perdida no tempo como uma personagem de Gabriel García Márquez. Mas conservou, o quanto pôde, as narrativas deliciosas de andanças e aventuras que teve. São lembranças fabulosas que ela passou para as filhas, os netos e, agora, com vida própria e um acúmulo de pequenas variações, os contos chegam aos bisnetos.

Vovó Rosa, como foi chamada nas últimas décadas de vida, aparece no livro A força da palavra mudou uma cidade, Teses e testemunhos, de autoria do padre Alfonso Pastore, como Maria Rosa Cordeiro. A crônica é próxima do que, sentada na cadeira, com a perna esquerda ferida, enfaixada, o cabelo branquinho e curto, no alpendre de um sítio nas fronteiras da capital, ela contava para os netos, com a voz empostada e o mesmo entusiasmo de todas as vezes.

O fato se deu em meados de 1927. Mas tudo isso poderia ter ocorrido em qualquer momento do passado. Um filme de velho oeste em uma cidade de pedras e casarões, passado sob a ótica de uma menina de 9 anos que presencia a tomada de Paracatu. Em uma das versões, um homem corre pelas ruas da cidade. ;Os revoltosos estão chegando! Os revoltosos estão chegando!” Imbuído de urgência e medo, ele urina nas roupas. Perto dali, outro se aproxima do bando de 40 homens armados. Gigantes sobre cavalos, tomam-lhe a montaria, o dinheiro, tudo. Ele protesta e pede para falar com o chefe.

Quem vem ao encontro de Antônio Cordeiro é Siqueira Campos. Um sobrevivente da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana e um dos líderes da Coluna Prestes ; movimento tenentista florescido no âmago da insatisfação com a política oligárquica da República do Café com Leite. A Coluna, já desmembrada, vivia seus últimos dias, em fuga, e já tinha mais características de salteadores que de militantes políticos. O militar assente aos pedidos do homem e ordena que lhe devolvam o relógio, um Patek Philippe, presente do pai que a vítima trouxera de Portugal para o Brasil quando jovem.

Na cidade, os revoltosos quebraram a loja de um homem que tentou impedir-lhes a entrada no estabelecimento, e um dos invasores morreu com um tiro dado por um morador. Por isso, correram pela região, entrando em residências, em busca de vingança. Puseram de joelhos um que poderia contar-lhes onde morava o desafeto, mas não conseguiram encontrá-lo. Também entraram na loja do cunhado de Antônio Cordeiro, Alexandre, tio por parte de mãe de Maria Rosa, e pediram arreios. Os equipamentos de montaria ficavam em vigas no teto. Como o pé direito era alto e a iluminação era de lamparina, precária, o comerciante blefou. Disse que não vendia mais. Podia ter morrido, mas a mentira colou. Em outra versão, no entanto, eles levaram os selins e o que mais quiseram.

Também pediram dinheiro e ameaçaram incendiar a cidade. Mas foi no dia seguinte que se deu o fato que dona Maria Rosa contava com maior emoção. Siqueira Campos pediu a Alexandre café fresco para todos os homens. A menina ajudou no preparo com a mãe, Virgínia, uma tia, duas empregadas, além de vizinhos.

Uma das mulheres propôs que envenenassem o café, mas Vigínia interveio. Além de ser cruel, era certo que eles obrigariam alguém a tomar a bebida envenenada primeiro. Dois carregadores levaram a encomenda: José Machado Borba e Joaquim Crispim. Antes dos homens da Coluna, como era esperado, a dupla tomou mais de uma xícara, para provar que ninguém morreria. Os revoltosos partem com um homem a menos. A fuga termina com o bando de Siqueira Campos se exilando no Paraguai e o restante na Bolívia. Três anos depois, Getúlio Vargas tomaria o poder.