Jornal Correio Braziliense

Cidades

Pastéis salvadores

Por Severino Francisco >> severinofrancisco.df@dabr.com.br


O poeta maranhense Ferreira Gullar passou por Brasília, no início da construção da cidade, e foi o primeiro diretor da Fundação Cultural. Eram tempos épicos em que as coisas mais simples exigiam malabarismos para serem realizadas. Gullar pretendia aliar a tradição ao que havia de mais experimental na cultura. Organizou salões de artes plásticas vanguardistas e plantou a semente do samba no solo inóspito da nova capital ao convidar a Estação Primeira de Mangueira para um batuque no planalto.

O regime militar atropelou tudo. Mas ficaram algumas marcas de sua passagem por Brasília. Uma delas são as garrafinhas de areias coloridas, vendidas na Torre de Televisão, trazidas pela primeira vez por Gullar, de sua terra natural, o Maranhão.

Gullar é pura tensão entre racionalismo e passionalidade. Ele escreveu que parece um boeing, demora para decolar, para sair do campo da razão. No entanto, quando vai, voa alto e longe. Ele esteve muitas vezes em Brasília para fazer palestras a estudantes. Em um desses encontros, evocou uma intrigante experiência sobre os limites da razão em nossa vida.

Certo dia, Gullar foi até a casa de um grande amigo, o crítico de arte Mário Pedrosa. Lá, se reunia uma constelação de intelectuais brilhantes, naqueles anos 1960 de convulsões, contradições, turbulências, inconformismos, debates intermináveis e revoluções por minuto.

Mário Pedrosa e os amigos se dedicaram a uma acurada análise da situação política no Brasil e no mundo pelo método dialético e chegaram a conclusões tenebrosas sobre o futuro da humanidade, parecidas com as que fazemos hoje com a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos.

Gullar ficou deprimido com a conversa e resolveu ir para o quarto de pensão que dividia com os amigos Oliveira Bastos (editor do Correio nos anos 1980) e José Carlos Oliveira, polêmico cronista daquela época. A ideia do suicídio germinou, começou a ganhar força e a tomar conta de sua cabeça. Sentou-se na cama e ficou repisando as argumentações funestas levantadas no encontro.

Quanto mais repassava a confabulação, mais avançava a tese do suicídio. Contudo, de repente, ele se deparou com um saquinho de pastéis de banana ensebado em cima de uma mesa, comprado por um dos companheiros de quarto. Já que não estava fazendo nada, resolveu experimentar o pastel, sem muita vontade, de maneira aleatória.

;Até que não está mal;, pensou e provou mais um. Em suma: não sobrou nem um pastel no saquinho encharcado de gordura. Depois de degustar o sexto e último, Gullar se aquietou com uma leve sensação de saciedade e de bem-estar.

Em seguida, percebeu que a vontade de morrer havia se evaporado misteriosamente. Na verdade, ele estava se sentindo muito bem e bateu um estalo: ;Que merda de dialética é essa, que não resiste a meia dúzia de pasteizinhos de banana?;
* Crônica publicada originalmente em 7 de maio de 2017