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Aos 5 anos, quando ouvia o barulho de um avião no quintal de casa, a criança corria para ver aquela coisa grande no céu. Estamos em Ceres, interior de Goiás, distante 280km de Brasília. É 1965. ;Eu dormia e sonhava com aquilo, com o barulho do avião.; Aos 7 anos, gostava tanto de empinar pipa, que inventou uma engenhoca: ;Era uma carretilha, que melhorava o desempenho da pipa na hora de voar. Ela soltava a linha mais rapidamente e recolhia também;, lembra.
Aos 9, construía aeronaves com latas velhas da casa. A criança sempre quis voar. Sempre. Aos 18, José Carlos da Silva realizou o sonho de uma vida. Foi servir a Força Aérea Brasileira (FAB). Virou mecânico de avião. Logo se destacou. Tornou-se o melhor da turma. Passou a fazer, cada vez mais, cursos de especialização. Somaram-se os certificados, as medalhas e as condecorações pelos bons serviços prestados à nação. Virou, nesse período, instrutor de cursos de preparação de solo às aeronaves. ;A minha promoção foi publicada em boletim;, conta, com orgulho.
Os anos se passaram. José começou a perceber, na verdade sempre soube, que algo o inquietava. Não gostava do corpo, e sua cabeça não era exatamente de homem. Procurou ajuda numa junta médica da Aeronáutica. ;Disseram que era tensão, estresse, que podia passar;, conta. Mas ele insistia que era mais do que isso. Era algo que sempre o acompanhou.
Sentença
Em 1998, José ouviu pela primeira vez que era transexual. Era como ele se sentia. Uma mulher, com alma de mulher, no corpo de um homem. Veio a separação da mulher e da única filha. Em 2000, o Correio Braziliense encontrou José Carlos. Era o começo de uma série de reportagens que durou uma década. Capítulos de uma história recheada de dor, preconceito e uma luta sem fim. Era o começo do filme Maria Luiza, que estreia neste domingo (24), às 15h, no 52; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. É o único do DF que fará parte da Amostra Vozes, na categoria nacional. Já esteve nos principais festivais de cinema no Rio, em São Paulo, na Argentina, na Holanda e no México.
Ainda em 2000, o jornal teve acesso a um laudo confidencial do Alto Comando da Caserna. Lá, o mecânico, antes condecorado e agraciado com medalhas, não servia mais para o ofício que executou por 22 anos seguidos. No laudo médico, o parecer: ;Atrofia testicular por provável ação medicamentosa. Transexualismo;. E a sentença: ;Incapaz, definitivamente, para o serviço militar. Não é inválido. Não está impossibilitado total e permanentemente para qualquer trabalho. Pode prover os meios de subsistência. Pode exercer atividades físicas;. Era ; e ainda continua sendo ; o primeiro caso de transexualidade das Forças Armadas brasileiras.
Começava, então, a luta de José Carlos para permanecer na carreira militar e para fazer a cirurgia de mudança de sexo. Com o apoio da Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, do Ministério Público do DF (Pró-vida), teve início a segunda parte dessa história. Afastado da FAB, começou o tratamento no Hospital Universitário de Brasília (HUB), para pacientes transexuais. Rotinas de consultas com psiquiatra e psicólogo. E, finalmente, em junho de 2005, aos 45 anos, no Hospital das Clínicas de Goiânia, foi realizada a cirurgia da mudança de sexo, sempre com o apoio do Ministério Público do DF. José Carlos deixava de existir. Deu lugar à Maria Luiza da Silva, ao que sempre foi.
Homenagens
;Maria porque minha mãe, muito católica, disse que, se fosse menino, ia se chamar José; menina, Maria. E Luiza porque minha avó materna foi muito importante na minha vida;, explica Maria Luiza, a cabo reformada da Aeronáutica.
O filme, que só foi possível ser realizado graças ao Fundo de Apoio à Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura do GDF, se chama apenas Maria Luiza. E o diretor Marcelo Díaz, brasiliense de 44 anos, casado, um filho e oito documentários na bagagem, entre curtas e médias, explica o seu primeiro longa-metragem, que contou com equipe de cerca de 50 pessoas: ;É um documentário de 1h20 de duração. Rodamos entre 2015 e 2017, com filmagens em Brasília, Ceres, Goiânia, onde ela fez a cirurgia, e no Rio de Janeiro. Lugares determinantes da vida dela e de tudo que passou e viveu em cada uma dessas cidades;. E, claro, o filme conta a trajetória dela, que, há 19 anos, luta para receber as promoções a que tem direito, mesmo reformada.
O advogado de Maria Luiza, Max Telesca, 45 anos, disse ontem ao Correio que a ação que pede a nulidade do ato de reforma, em 2000, e as consequências financeiras do ato, foram causas ganhas em primeira e segunda instâncias. ;Agora, a ação está no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Tenho certeza de que o entendimento será favorável;, avalia Telesca.
No documentário, há depoimentos marcantes de pessoas da família, dos colegas da FAB e de todos que conviveram com ela e acompanharam a história de perto. ;É um filme que fala de uma pessoa muito simples e sua dualidade entre ser militar e uma mulher trans;, explica o diretor. E prossegue: ;Eu me interesso por histórias de superação, de transformação. Vi na Maria Luiza a história de uma senhora com uma vida muito simples, do interior de Goiás, que só queria ser aceita e continuar a carreira militar a que tinha direito, antes de ser reformada contra a vontade e sofrendo muitos preconceitos;.
Na manhã de ontem, o Correio encontrou Maria Luiza e o diretor Marcelo Díaz, no Cine Brasília. Não poderia haver cenário melhor. Em meio à montagem e à arrumação do cinema para o evento, que começa nesta sexta, a conversa foi, na verdade, uma volta à história dela, para relembrar que tudo que está no filme foi contado, com exclusividade, pelo jornal. Há três anos e meio, a reportagem teve o primeiro encontro com o diretor. A conversa, numa padaria do Sudoeste, durou uma tarde inteira. Na pasta dele, havia vários recortes das páginas onde a história de Maria Luiza foi publicada por longos anos.
Luta por dignidade
A primeira reportagem foi em 2000. De lá para cá, uma série de matérias especiais produzidas ; a última, em 2017, contava sobre o fim das filmagens. Depois da cirurgia, em 2005, a luta para mudar o nome e o sexo nos documentos civis e militares e, sobretudo, a luta que ainda trava para ter de volta os direitos suprimidos. ;Eu sou a única mulher militar da minha turma que continua cabo;, diz, com nítida tristeza.
Aos 59 anos, Maria Luiza mora no mesmo apartamento modesto de dois quartos, ainda da FAB, no Cruzeiro Novo. Mas a qualquer momento pode ter que deixar. Pinta, desenha, gosta de fotografia e vai à missa aos domingos, na igreja perto de sua casa. Anda muito a pé, seu esporte diário. ;Caminho até três vezes por dia;, diz. Talvez explique os 56kg no corpo de 1,70cm. Extremamente tímida, Maria Luiza é muito reservada quanto à sua vida privada. Solteira, não tem qualquer tipo de rede social, nem mesmo Whatsapp. ;Eu sou feliz assim. A gente precisa ser feliz com a gente mesma. Eu sou realista, sou pé no chão.;
Marcelo Díaz ouve Maria Luiza falar. Ele se emociona: ;Conhecer a história e conviver com ela me fizeram um ser humano melhor;. E reflete: ;A pessoa mais radical e conservadora, se vir o filme, vai se emocionar. É uma história de uma pessoa que corre atrás dos seus direitos, que só quer existir e ser aceita. Sobretudo nesse momento de tanta intolerância que estamos vivendo no Brasil e no mundo;.
E foi a vez de Maria Luiza ouvir o diretor falar. Ela olha para o cartaz com o nome dela. Parece sair dali. Um filme, claro, passou na sua cabeça. Um filme onde ela se tornou a personagem principal da própria vida. Às vezes, histórias contadas num jornal podem parar numa tela bem grande. E emocionar uma multidão. E fazer pensar. Tudo que é real não morre. Pode, até, virar filme.