Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Velhas tapeçarias

É com muita sensibilidade que o músico Paulo Tatit, do Palavra Cantada, narra, na canção Eu, uma história familiar. Na letra, pequenas coincidências definem o destino de famílias, como um casal que se apaixona graças a um incidente envolvendo uma barata, no Rio Grande do Sul, ou uma mulher que enfrenta o bando de Lampião. No segundo caso, não fossem os cangaceiros desconfiarem de um caixeiro viajante, salvo pela heroína, o ;eu lírico; se dá conta de que ;nem sequer existiria;. É poético, é infantil e, ao mesmo tempo, profundo. Faz o ouvinte se perguntar de onde veio.

Todos nós temos histórias familiares. Às vezes, nos esquecemos de perguntar sobre elas. Às vezes, não aprendemos a perguntar. Às vezes, esse direito nos foi tirado por um pai que partiu sem querer saber o nome dos filhos, deixando um espaço em branco na certidão. Para alguns, faltam ambos os nomes. E a história que se vive é, ainda, um primeiro capítulo daquelas pessoas. Mas, todo mundo veio de algum lugar. Todo mundo pertence.

Lembro-me que, aos 16 anos, quando me mudei para a casa de meu pai, meu avô paterno, Flory, entrou em uma crise maníaco-depressiva. Foi um período conturbado para um adolescente que já passava por grandes mudanças. Foi difícil compreender o sofrimento e a situação daquele homem idoso, até então, imponente. Não me lembro para onde íamos, mas, uma vez, de carro, ele desatou a falar. Era cansativo, quase impossível ouvi-lo. Fiquei virado para a janela enquanto ele dirigia. No meio de uma profusão de informações, ele contou algumas histórias de vida fantásticas que não escutei.

Não perdi tudo. Ainda guardo alguma coisa. Foi possível recuperar pedaços com meu pai, nas memórias do que dizia minha avó e com alguns escritos que ficaram em caixas antes de se desfazerem. É como uma tapeçaria antiga, aos pedaços e desgastada, onde é preciso muita paciência e imaginação para preencher os espaços vazios que o tempo e o esquecimento tomaram para si. Uma colega, certa vez, me viu com uma camisa do Quinteto Violado. Lembrava-se do pai ouvindo os discos da banda. Às vezes, poucas informações têm muito significado. Mas, é certo que, em meu ensaio sobre a surdez, perdi bons pedaços dessas histórias familiares, contados por um homem que esperava que eu escrevesse um livro.

Hoje, gostaria de poder escrevê-las como ele contava. No caso de minha avó materna, Maria Rosa, ela era dessas avós que fazem doces alquímicos, tricotam e contam histórias. Ela narrava com classe as voltas que a vida deu, para as filhas e para os netos. Hoje, as repetimos para os nossos filhos. As histórias do seu Flory, parte delas se perderam com a morte de meu pai e com a porta fechada da minha rebeldia. As de dona Maria Rosa ainda povoam o imaginário, ganhando novos detalhes, virando algo além do registro puro e simples. Até o caminho que as histórias familiares tomam fazem parte das histórias familiares.

A história, dizem, é uma fabulação. E continua acontecendo de se desenrolar. Aqui e agora. Cresce feito hera, com letras na cicatriz, no braço quebrado, na memorabilia, nas cartas escritas e nas fotografias. E ficam mais ricas se a gente aprende a contá-las, olhá-las com outros olhos. Uma coisa triste, de repente, fica engraçada, e vice-versa. Pode começar com um senhor confuso que um dia pilotou aviões e foi reservista da Força Aérea Brasileira. Ou com uma velhinha esquecida que, na tenra idade, cruzou com a Coluna Prestes nas Minas Gerais. Ou mesmo com uma moça, uma barata e um saco de batatas. Tanto faz. A história é minha, é sua, é de todo mundo. E o melhor que fazemos é afastar os revisionistas e não perdê-las.