Jornal Correio Braziliense

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Crônica da Cidade

Uma flecha no tempo

Brasília, 13 de novembro de 2019. Por volta das 6h, um americano professor de inglês que vive na capital federal há décadas desperta e, ao olhar o WhatsApp, se depara com uma série de mensagens da irmã, dos Estados Unidos. Efusiva, ela fala de uma página no Facebook em que um especialista em música, também americano, faz críticas e sugere artistas de várias partes do mundo. A mulher está surpresa com a descoberta de um cantor brasileiro com vasta produção nas décadas de 1960 e 1970, comparado a Caetano Veloso e Jorge Ben, e cuja habilidade em compor, diz o crítico, ;é tão sensível e delicada quanto o trabalho de um relojoeiro suíço;.

Planalto Central, meados de 1958. Um grupo de freiras chega à ebulição que é a construção da nova capital. Oscar Niemeyer, Israel Pinheiro e outros coordenam os trabalhos a toque de caixa. As religiosas, irmãs salesianas do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, pisam a terra vermelha do cerrado para fundar o Centro Educacional Maria Auxiliadora. O colégio, primeiro, funciona em um prédio de madeira na Candangolândia, chamado, à época, de Velhacap. Posteriormente, em 1960, Juscelino Kubitschek cede aos salesianos um terreno onde a instituição de ensino funciona até hoje, na 702 Sul.

De volta à manhã da última quarta, ainda sonolento, o professor de inglês lê, não sem surpresa, as mensagens da irmã. ;Você já ouviu falar de Abílio Manoel?; Não. Nunca ouviu falar em Abílio Manoel. O homem caminha pensativo até a cozinha para preparar o café da manhã. Sua companheira, que é brasiliense, está de pé em outro cômodo da casa. Com um comando de voz, o americano pede que um aplicativo toque uma música do compositor. ;Tocar Abílio Manoel;, o equipamento responde com uma voz mecânica segundos antes de começar. ;Bom dia Amigo/Bom dia irmão/Basta um sorriso. E ganhe esta canção/Don don don don don;;.

Ato contínuo, a companheira do professor corre apressada. Busca o marido nos cômodos, cheia de urgência, como se a residência fosse maior do que realmente é, até encontrá-lo na cozinha. ;Quem está cantando? O que foi que você colocou?;, pergunta, exasperada. Ele leva alguns segundos para compreender que a canção atingiu a mulher como uma flecha vinda do tempo. Lançada com precisão pelo arqueiro da memória, do distante Centro Educacional Maria Auxiliadora de 1973, a uma outra Brasília, 46 anos depois. Alheia ao especialista em música do Facebook, às mensagens da cunhada americana e ao subestimado Abílio Manoel, por alguns momentos, a brasiliense vive em duas épocas ao mesmo tempo.

É 1973. Em vez de tocar o sino, as freiras do Maria Auxiliadora botam Abílio Manoel para chamar os alunos para a sala de aula. ;Basta um sorriso/E ganhe esta canção/As flores no campo/As nuvens no céu/As águas do rio/E eu num barco de Papel;;. A música continua, e a mulher do professor de inglês, emocionada, sente, como quem lembra de cor uma oração, a textura do uniforme. E, em 2019, as meninas de 73, vestidas de blusa branca, jardineira preta, sapato escuro e meia até o meio da canela, caminham animadas para a sala. Falam, talvez, da beleza de Jardel Filho ou Roberto Carlos, sem saber que a música ficará guardada para sempre. Lembra? Aquela! Não sei de quem era... ;Bom dia amigo, bom dia irmão;; Sim! Que saudade!