Moro em um condomínio horizontal fronteiriço a uma mata cerrada e, no momento em que escrevo, tenho como trilha sonora o som rascante, áspero e seco das cigarras. Elas constituem uma orquestra de música concreta do sertão. No próximo ano, celebraremos os 100 anos de João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas do século 20. Sempre que ouço as cigarras, me lembro do poeta pernambucano, porque elas são puro João Cabral com o seu cante a palo seco.
Quando viajei de ônibus pelo sertão nordestino, mirava a paisagem pela janela e só vislumbrava os versos contundentes do João: ;Vegetação aberta em unhas e sabres;. Com seu cante a palo seco, as cigarras são a mais bela homenagem ao autor de Uma educação pela pedra. Elas são heavy-metal e poderiam tocar no Porão do Rock ou no Clube do Choro: ;Se diz a palco seco/o cante sem guitarra;/o cante sem; o cante/o cante sem mais nada; se diz a palo seco a este cante despido; ao cante que se canta; sob o silêncio a pino;.
As cigarras fazem um intervalo de silêncio, mas retomam o cante em seguida, enquanto leio. ;O cante a palo seco/ é o cante mais só; é cantar num deserto/devassado pelo Sol;. O sonido delas vem do quintal e da mata, sob um Sol contundente: ;O cante a palo seco/não é um cante a esmo;/exige ser cantando/com todo ser aberto/é um cante que exige o ser-se ao meio-dia/que é quando a sombra foge/e não medra a magia;.
Estava fazendo uma reportagem sobre a festa em homenagem ao Padre Cícero quando ouvi um som metálico retinir, e os versos de Cabral ressoaram em minha cabeça novamente. O que é isso? Perguntei a um morador, e ele respondeu que era o pássaro araponga em uma loja de produtos agrícolas: ;A palo seco canta a bigorna e o martelo;/o ferro contra o ferro;/a palo seco canta/aquele outro ferreiro/o pássaro araponga/que inventa o próprio ferro;.
Como moro perto da mata, é comum entrarem pássaros e insetos estranhos pelas janelas ou por alguma frincha das portas em minha casa. Algumas vezes, os beija-flores têm dificuldade de encontrar a saída pelas janelas e portas, e desfalecem de tanto voar atabalhoadamente. A situação é muito angustiante.
A minha esposa é filha de um agrônomo e ecólogo e sabe lidar com a situação delicada. Já reanimou vários pássaros esbatidos nos vidros apenas dando água em uma colherzinha. Logo, se reanimam, recobram os sentidos e estão prontos para voar. É uma alegria vê-los adejar de volta à mata.
Ao acordar, observo tudo com cuidado. Fico com medo de encontrar um escorpião ou uma cobra. Nesta semana, quando me levantei, detectei em um desvão mais escuro um inseto que parecia um besouro, emborcado e envolto na poeira. Eu estava sem óculos, não consegui identificar o que era em uma primeira mirada.
Peguei uma vassoura, puxei o bicho pelo chão da sala rumo à varanda e constatei que ele estava inerte. Nenhuma pata, asa ou antena se mexia, não dava nenhum sinal de vida. Parecia só uma carcaça emborcada. Dei novo impulso para jogá-la com a vassoura para o quintal. Mas, para a minha surpresa, o bicho emitiu um sonido rascante, preparou a decolagem com dificuldade e ganhou voo rumo à mata, com poeira e tudo nas costas. Não era besouro; era cigarra. Fiquei trêmulo com o milagre do voo.