Frente a frente
A morte do pai, de Karl Ove Knausgard, é daqueles livros que te pegam com o tempo. Quando li, não sei dizer o que me fez terminar. Talvez o desafio. A vida de um jovem Karl não me interessava diretamente. Era como se a obra estivesse conversando com uma parte de mim que decidiu ler, independente do meu consciente. O começo do livro, a introdução, me pegou de jeito, e isso facilitou as coisas. O escritor gasta um tempo falando da morte. Da morte nas páginas de jornal. Da morte no cotidiano. Uma vivência que quem faz (ou fez) jornalismo de Cidades é praticamente obrigado a ter. Ao menos, é difícil fugir. Acidentes, assassinatos, atropelamentos, e uma sorte de tragédias à disposição das estatísticas em uma cidade grande, com muita gente de muitos lugares se locomovendo o tempo todo sob elevada concentração de renda. Alguma hora, alguma coisa acaba dando errado.
O pai de Karl morre, e ele e o irmão mais velho viajam para arrumar o enterro. Descobrem a residência de um acumulador, coberta de garrafas de cerveja, caixas de pizza e outros rejeitos. Um cheiro nauseante. E, se bem me lembro, é quando o personagem do escritor, que até então tentava conciliar a escrita emperrada de um livro e a rotina com três crianças, começa a avaliar a própria vida, a adolescência, em busca da figura do pai. Uma tentativa, talvez, de elevar a figura que destruiu a família sob o peso do alcoolismo e da própria miséria pessoal. Um homem que morreu sozinho, distante dos que amava, mas cuja partida deixou uma marca profunda no narrador, que nos leva pela burocracia do enterro, pela faxina na velha residência e pela própria juventude.
Conversando com colegas, trocamos, com certo incômodo, histórias de tragédias. Os gritos da mãe que se depara com o corpo do filho no asfalto. O estômago encolhe. Às vezes, é preciso respirar fundo para conter o choro. Às vezes, para conter a revolta. Você sabe que, em algum momento, até o fim do dia, terá que conversar com um parente da vítima. Se aproximar com jeito, pedir desculpas e perguntar o necessário. Às vezes, essas histórias nos remetem às nossas próprias tragédias. A dor da perda de um ente querido ou de um amigo. Nunca há uma boa maneira para fazer essa abordagem, pois nunca é possível pensar em como o próprio repórter gostaria de ser abordado. O jeito é pedir desculpas, explicar o que deve acontecer e, quem sabe, eles topem falar.
O irmão de Karl trata a tragédia com um certo distanciamento. Mas o protagonista, a despeito de todos os esqueletos no armário, chora em alguns momentos. Vem de uma vez. Explosões incontidas. Claro que a morte do meu próprio pai me fez repensar a história. É quando tudo se mistura, inclusive as coberturas trágicas que, diferentemente do que alguns podem pensar, não ficaram mais fáceis com o tempo. No livro Intermitências de morte, de José Saramago, a lógica é mais fabulosa, mas não menos tétrica. A morte se cansa de matar. Deixa a humanidade à mercê da vida compulsória, a despeito da situação física e mental dos moribundos. E como faz falta. Depois, passa a avisar com antecedência os próximos na lista.
As pessoas descobrem que nunca viveram de verdade. Com pouco tempo pela frente, abandonam tudo. E surgem novas tragédias, resultado da nova e estranha dinâmica com a morte. Até que tudo volte a ser tão imprevisível como sempre foi. E é interessante botar as duas histórias, tão diferentes e semelhantes, frente a frente. No fim, nos resta um punhado de velhas lições. Equilibrar o viver a própria vida com o compartilhar. Nunca nos lembramos disso, por evitar pensar na morte até que ela apareça como um estranho no quarto, ou até que desapareça na hora errada. Só existe o agora. Não deixe nada por falar. Coloque a vida em perspectiva. A imprevisibilidade nos obriga a viver mais e melhor.
Um adendo. O psicanalista e escritor Irvin Yallom propõe um exercício em De frente para o sol. Não se trata de fé, ou da falta dela, mas de um exercício de imaginação. Tentar pensar na vida e na morte, sem uma promessa, mas com um início e um fim em si. A ausência de perspectivas depois da partida pode trazer luz ao aqui e agora. Ao menos por uns instantes, é possível definir como nos transformaríamos, sem a ideia de uma promessa de recompensa, continuidade ou punição. É, certamente, uma boa forma de tomar contato consigo.