Uma fogueira para as histórias
Quando nossos pais falavam sobre desenhos animados e programas infantis, o rol de títulos e personagens era bem mais limitado do que para os que nasceram nas décadas de 1970 ou 1980. Sei que um dos nomes queridos da época era o intrépido Nacional Kid. Nunca assisti, mas meu pai me ensinou a musiquinha nas andanças da Rodoviária do Plano Piloto para a Vivendo e Aprendendo, na L2 Norte, onde eu era aluno e ele professor. Se incluímos o cinema na conta, claro, o número aumenta. Mas, para minha geração e a imediatamente anterior, é seguro dizer que a oferta continua muito superior.
Hoje, nem se fala. A quantidade de títulos para crianças e adolescentes é ainda maior. E cresce, também, com os animes orientais, que ganharam muito espaço na década de 1990. A internet, claro, ajudou a difundi-los, bem como as reuniões de fãs e a já extinta Rede Manchete. Eu gosto de saber o que a filhota assiste. Não apenas acompanho, como me antecipo, em busca das histórias e personagens mais estimulantes. E, às vezes, me vejo vidrado, nós dois sentados lado a lado, ansiosos com o desdobramento dos últimos desafios de Lady Bug, do grande mistério do Mundo de Greg ou das aventuras de Steven Universo ou de Finn, o humano, e Jake, o cão.
Desde as gerações esquecidas, dos bisavós dos bisavós dos nossos bisavós, que nos sentávamos ao redor de fogueiras para contar histórias. Religiões que dominaram povos e destruíram infiéis hoje não passam de mitos. E a transformação de cada narrativa continuou a mudar. As fábulas coletadas pelos irmãos Grimm, por exemplo, já foram histórias contadas para adultos. A Pequena Sereia, sinto dizer, não conseguia conquistar o príncipe. Virava espuma do mar. Outras eram muito mais próximas de contos de terror. Hoje, temos as nossas histórias de adultos. As novelas tradicionais da TV brasileira, as séries inglesas, americanas, alemãs. E, claro, um conteúdo agora que, em vez de modificado com o passar das gerações, é feito diretamente para as crianças.
Chama a atenção os desenhos que, feitos para crianças, apresentam subtextos com tramas e mensagens que também servem aos pais. Muita coisa mudou na TV e, às vezes, naturalmente, alguém se espanta. E dá pra entender, embora as coisas continuem a mudar. As histórias infantis evoluíram com o passar do tempo. Há preocupação com igualdade de gênero, representação. Greg é um menino negro que passa o dia com os amigos à beira de um riacho. Marinete é a líder, menina que tem como dever, inclusive, selecionar outros heróis para ajudá-la. E Steven, o que eu guardo mais carinho nessa nova leva, é filho de uma alienígena com um humano. Está na mira de um perigoso império galáctico. Mas é um menino sensível, barrigudo, de jeans e havaianas, cuja arma principal é um escudo com uma rosa no centro, e que adora resolver as brigas na conversa.
Guardei para o final a maior das polêmicas, o beijo. Nada de mais. Está por aí há décadas. Branca de Neve, da Disney, foi lançada no Brasil em 1938. Minha pequena adora a história. Os colegas da escola, também. Tem beijo. Bela Adormecida chegou ao Brasil em 1959. Também faz fama há gerações. Tem beijo. E por aí vai. Não devia incomodar, de verdade. Não dá pra proteger as crianças da realidade. Não dá pra protegê-las da realidade da morte, da raiva ou do amor. E essas histórias trazem esses temas. Me encantou muito que, em Steven Universo, duas personagens femininas se casassem, bem como no louco A hora da aventura. De repente, há um novo beijo comum nessas narrativas.
É engraçado como as coisas mudam e o mundo, de repente, por mais selvagem que pareça, abra portas para que as pessoas possam se sentir mais elas. Para normalizar as formas de amor que, durante tanto tempo, foram criminalizadas, execradas sem motivo que as justificasse. E aí vêm as histórias que contamos, que criamos, talvez a única espécie com essa capacidade em todo o Universo, e, devagar, elas mostram que está tudo bem. Que amor, com respeito, consentimento, é tudo igual. E dá uma pontada de inveja dos roteiristas, os bardos da nossa geração, que mudam o mundo com ficções que falam da realidade. Escrevem com a fabulação que eu também queria escrever. Pena que TV seja uma ferramenta tão passiva. Falta mesmo uma fogueira para seguirmos a tradição.