Cidades

O Brasil é cruel com criança

Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos admite falha na rede de proteção e diz que entregará canal de denúncia reformulado

Correio Braziliense
postado em 12/09/2019 04:07 / atualizado em 19/10/2020 11:47

Agora eu sou Estado. Podia dizer que estou fazendo. Não, não sou hipócrita. O Estado precisa melhorar a sua atenção à criança.  E quando falo isso, eu assumo a responsabilidade  Damares Alves,  ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos


À frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves afirma que dá atenção especial ao combate à violência sexual contra crianças e adolescentes. “É a luta da minha vida. Eu fiz da dor a minha luta”, diz, numa referência ao abuso que sofreu na infância e que a impacta até hoje. Mas ela garante que o enfrentamento a todos os tipos de violações de meninos e meninas é prioridade na pasta. A ministra admite que há falhas na rede de proteção a esse público e garante que está trabalhando para resolvê-las. Uma das ações tem sido o reforço dos conselhos tutelares. O ministério está entregando carros e equipamentos nas unidades pelo país, além de promover cursos de capacitação de conselheiros. O DF recebeu, até agora, veículos, refrigeradores e aguarda outros itens. De acordo com a ministra, um dos focos no momento é fortalecer os conselhos no Entorno. Ontem, ela assinou acordo com a Polícia Federal para suporte, entre outras, às atividades de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes nas estradas brasileiras. A pasta também trabalha na reformulação do Disque 100. O canal vai poder receber denúncias, por exemplo, por WhatsApp e outras redes sociais. A seguir, os principais trechos da entrevista de Damares Alves ao Correio.
 
Existe uma lei que veta castigos físicos contra crianças, mas muitas famílias consideram interferência do Estado. 
O que a senhora pensa disso?
A gente tem de respeitar a autonomia da família, mas o Estado não pode se omitir diante da violência contra a criança. E eu falo isso como defensora da família e defensora da criança. Imagine a minha situação. Sou ministra da Família. Eu estou pregando que a família é a resposta para muitos dos problemas desta nação. E aí, quando eu vou falar da violência contra criança, tenho um relatório dizendo que mais de 85% dos abusos aconteceram dentro de casa. A família é a resposta ou é o problema? Eu entendo que o Estado, nesse conflito, não pode se omitir. Se há família machucando, o Estado tem a obrigação de fazer a interferência para proteger a criança: primeiro a criança. Ela é prioridade em tudo.

Falta divulgação sobre as leis que impedem castigos físicos?
Eu acredito que todo mundo tem de vir para essa luta. Não se pode mais aceitar omissão. A escola vai ter de vir, o professor vai ter de ampliar o seu olhar, a igreja, as instituições religiosas. Todos terão de ampliar esse olhar, começar a aprender a ler os sinais que as crianças estão emitindo. Um sinal de que elas não estão bem: a automutilação. Quando a criança está se cortando, quando ela está derramando sangue do seu corpo, ela está mandando um recado, está gritando. Tem sinal maior do que esse número absurdo de crianças se automutilando no Brasil? Crianças mesmo. Eu tenho ocorrência de criança de 6 anos se machucando no Brasil. Elas estão em profundo sofrimento. Então, todo mundo vai ter de vir para essa luta e, acredito, com mais divulgação. Nós estamos entregando para o Brasil, agora, mais um canal de recebimento de denúncia. Juro que eu não queria ampliar um canal de denúncia, se estou fazendo isso é porque tenho necessidade. Gostaria que não precisasse de ninguém denunciar, que as crianças estivessem protegidas no Brasil, mas não é a realidade. Vou dizer uma coisa: o Brasil não é cor de rosa, não é o país das maravilhas. É uma nação cruel com criança. E a gente precisa fazer esse enfrentamento.”

Como o Estado pode contribuir no combate à violência física?
O Estado precisa dar as respostas às denúncias que chegam. O fluxo é: recebimento de denúncia, encaminhamento e solução do problema. Vou falar do meu ministério. O Disque 100 recebe a denúncia. A ocorrência aconteceu na cidade de Nossa Senhora da Glória, no interior de Sergipe. Como eu vou chegar, de fato, a essa criança? Adianta eu ter um bom canal de denúncia? Por exemplo, eu recebo a denúncia, vou localizar o Conselho Tutelar da cidade. Esse Conselho tem telefone? Tem computador para eu mandar e-mail? O conselheiro tutelar tem carro para ir à comunidade onde está ocorrendo a violência? Então, esse fluxo e a resposta, o Estado vai ter de dar, vai ter de equipar o conselho tutelar, vai ter de capacitar o conselheiro tutelar. A gente acaba esbarrando na falha da máquina. Agora, estamos aprimorando o fluxo.

A senhora fala em Estado, mas a senhora responde pelo Estado.
Agora eu sou Estado. Podia dizer que estou fazendo. Não, não sou hipócrita. O Estado precisa melhorar a sua atenção à criança. E quando falo isso, eu assumo a responsabilidade. Na hora em que eu admito publicamente, eu tenho o compromisso público de resolver o problema. A gente precisa fortalecer a rede de proteção à criança.

A sociedade não vê castigos físicos como violência. De que forma se trabalha isso?
Mostrando que é violência. Existe uma diferença muito grande entre educação, disciplina e violência. Se tem pais achando que espancar criança é educação, não é. É violência. Pergunte a um adulto hoje que apanhou excessivamente... Eu apanhei na infância. Nossa geração apanhou muito. Às vezes, dói lembrar daquilo. Então, se tem alguém achando que espancamento, que agressão física é educação, não é. A gente tem de passar dessa fase. Já estava na hora de o Brasil virar esse capítulo.

Como combater a violência sexual contra crianças?
A ciência fala que mais de 50% das crianças vítimas de violência sexual vão se transformar em um abusador. Então, é um ciclo: o abusado vira abusador, e a gente tem de interromper esse ciclo. Com menos abusados teremos menos abusadores. Da mesma forma com relação à violência física. Eu acompanho muitos casos de pais, de agressores de crianças, quando pega o histórico desse cara, ele já veio de um contexto de muita violência na infância. Eu não estou justificando a violência. Mas os cientistas têm razão. São comportamentos repetidos de geração em geração. Então, se uma geração, se uma nação inteira se levantar e dizer ‘chega’, vamos inibir a violência sexual, a física.

Como está a rede de proteção no país?
Ela precisa muito ser fortalecida. Eu usei o exemplo do Conselho Tutelar. Eu considero um instrumento poderoso na proteção da criança, mas eu ainda tenho conselho tutelar no Brasil que está atendendo de bicicleta. Antes de eu assumir, vi uma imagem de um conselheiro atendendo de jegue, lá no interior do Nordeste. A forma como a rede é estruturada é perfeita: conselho tutelar, Ministério Público, delegacia, a vara de enfrentamento, as comunidades de acolhimento. Temos tudo isso no Brasil, mas muitas não estão bem estruturadas. Eu venho trabalhando nisso. Por exemplo, esse braço que é do nosso ministério, o conselho tutelar, estamos fortalecendo, equipando-os, mas não é só equipar com carro, com computador, é preparar melhor nosso conselheiro. As delegacias de enfrentamento à violência, estamos lutando para termos mais, ainda há poucas no Brasil. 

Como estão os Conselhos no DF?
O DF é pequeno, acho que todos os conselhos estão equipados. Os que não estão, estamos conversando com os deputados do DF, porque a gente só consegue isso por emenda parlamentar, não temos recursos próprios para isso ainda. Aqueles que já receberam há cinco anos, podem receber novos equipamentos. A minha preocupação é com o Entorno: Planaltina, Valparaíso, Cidade Ocidental. O Entorno estamos acompanhando agora.

Quais são os lugares do país mais problemáticos em relação à violência contra crianças?
Por incrível que pareça, os grandes centros urbanos. São lugares mais têm informação, deviam ser os com menos violência. Tem informação, a criança está na escola, os pais estão ouvindo todo dia televisão e rádio. Isso não quer dizer que estou anulando a violência na região ribeirinha, onde a informação não chega. Lá, a violência existe de fato. O que me causa preocupação é: ‘ah, a violência está lá porque não tem informação, mas, e aqui, que tem e a violência só cresce. Ou não estamos passando o recado direito ou ninguém está nem aí para violência contra criança.

O que foi aquele episódio das calcinhas?
Eu vou ficar na história como a ministra do azul e rosa, a ministra do pé de goiaba, a ministra das calcinhas. Fizeram de propósito. Na verdade, precisa desqualificar um pouco a ministra para dizer que esse ministério não vai dar certo. A minha preocupação é que muita gente entra nessa onda e não sabe que está sendo usado, inclusive, por pedófilos, está sendo usado por quem não quer que acabe a violência sexual contra crianças. É bom a gente lembrar que tem crime organizado na pedofilia. É o terceiro maior ilícito em dinheiro. Nós temos imagem de abuso de criança que são comercializadas a R$ 50 mil no mercado, estupros de bebês, tem vídeos que podem custar R$ 50 mil. Então: vieram me justificar o abuso de crianças na Ilha de Marajó (no Pará). Abuso não se justifica, não se minimiza, não se explica e não se relativiza. Não vem dizer que é cultural. Aí, uma pessoa da Justiça sentou comigo e disse: ‘Tem um estudo que fizemos que indica que  uma das coisas que pode estar atiçando esse desejo absurdo pelas meninas é que elas não usam calcinhas, elas são muito pobrezinhas lá. Aquilo me irritou. Não se justifica o abuso pela falta de calcinha. Então, eu estava falando naquela mesa ali (do auditório do ministério): ‘Nós vamos cuidar da Ilha de Marajó. Dizem que lá, as meninas são abusadas porque estão com fome, então, vamos levar comida; dizem que elas estão sendo abusadas porque os pais não têm emprego, então, vamos levar emprego para lá; dizem que elas são abusadas porque não usam calcinhas, então, vamos levar calcinha para lá, aliás, vamos levar uma fábrica’. Eu quis dizer, vamos levar um monte. Era uma indignação minha, mas não botaram as frases anteriores. Pegaram só isso, e deu aquela confusão.

E o abuso sexual é uma dor que a senhora sabe como é...
Muito. Talvez, se eu não tivesse passado não seria tão aguerrida. Eu fiz da dor a minha luta. Este ministério não trabalha só com isso, mas nesse quesito eu entro de cabeça. Todas as outras pastas trabalham, mas na pasta da criança e do adolescente, eu acho que me meto demais lá, porque é a luta da minha vida.

De que forma essa dor ainda a impacta?
A dor acompanha. Não se esquece. Não existe mágica de você apagar no seu cérebro aquilo que aconteceu, mas eu consigo lidar com a dor. Eu tenho falado muito com pessoas vítimas de abuso. Nós somos milhões no Brasil. É possível superar a dor, mas as memórias continuam. A ferida está aí. Mas como lidar com essa ferida? A gente precisa fazer uma política pública logo para lidar com tantas mulheres e homens. 

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